Prof. Nassim Silveira Calixto – Membro Emérito da AMM, grande perda para a Academia

    Faleceu no dia 5 de abril de 2018 o prof. Nassim Silveira Calixto, Membro Emérito da Academia Mineira de Medicina. Um dos mais importantes oftalmologistas mineiros do século XX, o prof. Calixto teve participação marcante na história da AMM. Em sua homenagem reproduzimos o texto abaixo co confrade João Amílcar Salgado, quando do lançamento do livro “Caminhos Cruzados do Parentesco Sulmineiro”, em que o prof. Calixto é co-autor.

    NASSIM SILVEIRA CALIXTO E ÁLVARO DA SILVEIRA

    Caminhos cruzados do parentesco sulmineiro

    NASSIM SILVEIRA CALIXTO

    João Amílcar Salgado

    Perguntei ao Nassim Calixto, professor de oftalmologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), se aceitava ministrar aula em nosso curso de História da Medicina – e ele se adiantou: já sei, você quer uma aula sobre o glaucoma na história da medicina…  Respondi: quero esta aula também, mas antes quero que fale sobre a vida e a obra de Álvaro da Silveira.  Não conseguindo dissimular a emoção desta surpresa, acrescentou: não sei se conseguirei sintetizar numa aula tudo o que o tio Álvaro foi na vida.  Isso retrata o flagrante comparativo de dois fatos: era-lhe mais fácil sintetizar numa aula todo seu saber enciclopédico sobre glaucoma, tema em que é a maior autoridade brasileira e uma das maiores no mundo, do que sintetizar a trajetória enciclopédica de seu tio ilustre.

    Nassim Calixto formou-se em 1952 pela UFMG, numa turma de eminentes médicos, que, além dele, entre outros, inclui, de um lado, os admiráveis cirurgiões Márcio Ibrahim de Carvalho,  Marcelo Campos Christo, André Esteves de Lima e João Antônio Meira e, de outro, peculiar lista de destacados laboratoristas: Luiz Felipe Carneiro, Orion Bastos, Oto Mourão, José Nogueira Filho, Ibrahim Heneine e Roberto Alvarenga.  Outra peculiaridade é o número de sobrenomes árabes entre os formandos, coincidência que acaba sendo bela homenagem à fundamental contribuição da cultura abássida à medicina ocidental moderna.

    Nassim Calixto nos mostrou que seu tio Álvaro Astolfo da Silveira (1867-1945) de fato encarnou aquele tipo ideal de homem mineiro, que, em vez de jamais se completar na mesma pessoa, mais de uma vez se concretizou em único cidadão incrivelmente real.  Sim, Álvaro era um destes. E, ao mesmo tempo, tal varão montanhês ilustra o engenho e a arte de que se valeu Ouro Preto para dar civilidade e cultura a um Brasil inteiro, de norte a sul, por meio de suas escolas superiores imperiais: Escola de Farmácia e Escola de Minas. Em que lugar do mundo uma escola de engenharia teria formado um engenheiro de minas, como o latinista Álvaro Silveira, de excepcional e igual competência, quer na própria engenharia, quer em matemática, geologia, geografia, botânica, paisagismo, agronomia, climatologia, música, história e literatura, sendo autor de textos preciosos em cada área? E muitos ex-alunos dessas duas escolas, originários de fora de Minas, daqui levaram a suas regiões nativas, no papel de multiplicadores civilizatórios, o saber e a cultura destas montanhas.

    Nassim e Álvaro são sulmineiros de Passos (cidade da qual Joaquim Gomes de Souza Lemos, bisavô de Nassim, foi o primeiro historiador) e descendem de André da Silveira, o fundador da cidade que o homenageia no próprio topônimo, Andrelândia, também no sul de Minas.  Os Silveiras são geneticamente dotados para a música. O magistrado Saturnino Amâncio da Silveira, outro bisavô de Nassim (além de ter sido o primeiro a fabricar porcelana no Brasil, em Passos) era compositor e exímio pianista, tendo sido aplaudido no Rio de Janeiro, quando tocou a quatro mãos, ao lado de Artur Napoleão. A filha dele, Mariana, também pianista, deu fino som ao cinema mudo passense.  Álvaro da Silveira, por sua vez, escreveu livro singular: A MATEMÁTICA NA MÚSICA E NA LINGUAGEM, de 1911.  Já Nassim integra a célebre grei de médicos melômanos, criada por Baeta Viana,  à qual seu cronista, o médico Flávio Neves, outro latinista, deu o nome de MELOFILIA HIPOCRÁTICA.

    Demais, Nassim e Álvaro descendem do tronco sulmineiro dos Lemos, originário de outra matriz cultural de Minas, Campanha da Princesa, especificamente de seu antigo distrito de São Gonçalo do Sapucaí, hoje cidade. Muitos médicos ilustres são Lemos deste ramo, mas o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais estuda dois episódios entre os Lemos, que são momentos marcantes da história da medicina brasileira.

    O primeiro envolve Lúcio Guimarães de Lemos, que era filho de João Antônio de Lemos, agraciado com o título de Barão do Rio Verde, patriarca desta linhagem.  Lúcio, em 1846, acabara de regressar da França, onde fora aperfeiçoar-se na fabricação de chapéus, preparando-se para assumir a fábrica do pai, o primeiro a fabricá-los no Brasil, no distrito de São Gonçalo.  Com vários casos de tuberculose na família, adquiriu doença respiratória diagnosticada como pneumonia. Como era pessoa de grande importância na corte, foi assediado pelos médicos, cada qual propondo salvá-lo, vindo a falecer aos 19 anos.  No necrológio publicado, os médicos fizeram saber como o óbito sobreveio apesar da ótima assistência oferecida por eles.

    Conhecendo assim o tratamento dispensado ao jovem industrial, os homeopatas vieram também a público para mostrar que, se o moço tivesse sido assistido por eles, sem dúvida estaria ainda vivo, pois estava claro ter sua morte resultado de excessos terapêuticos. Esta polêmica ocorreu em 1846, 36 anos após a publicação do Organon de Samuel Hahnemann, a obra fundamental da homeopatia européia.  A importância histórica deste conflito bem documentado está na posição pouco defensável da doutrina e dos métodos da medicina oficial exercida nessa época no Brasil. Vale lembrar que foi nessa quadra do século 19, a partir de 1832, que o Brasil passou a ter suas duas primeiras faculdades de medicina (escolas médicas de nível superior), sendo que demoraria largo tempo para chegar até aqui a prática médica resultante das contribuições de Claude Bernard, Virchow, Pasteur e Lister, contemporâneos da controvérsia.  Na própria Europa, estes revolucionários só no século 20 conseguiriam influenciar os clínicos. É possível que as autoridades imperiais (o jovem Pedro II foi presenteado com uma cartola confeccionada por Lúcio Lemos pouco antes de este adoecer) já tivessem sido desafiadas por acontecimentos semelhantes. Daí procurassem o aprimoramento dos profissionais já em exercício, sendo a principal providência transformar, em 1835, a precária entidade denominada Sociedade de Medicina na Academia Imperial de Medicina, da qual o  primeiro presidente foi o sabarense Joaquim Soares Meireles.

    O segundo episódio envolve o próprio Barão do Rio Verde, que foi assassinado pelo esposo de sua sobrinha neta, o médico Joaquim Gomes de Souza (parente de Vilelas sulmineiros e da própria consorte), de reconhecida competência, mas que se viu vítima de insanidade mental, causa do crime.  A se dar crédito, no primeiro caso, aos homeopatas – pai e filho tiveram morte causada por médicos. Gomes de Souza, além de parente do médico Urias da Silveira (autor de interessante formulário terapêutico), é ascendente não só de Álvaro e Nassim Silveira, mas também da primeira-dama Sarah Souza Lemos (esposa de Juscelino Kubistschek, também médico) e de outros renomados médicos e cidadãos mineiros.

    O interesse histórico de ambos os episódios reside em que o primeiro corresponde à primeira polêmica de alta repercussão entre médicos e homeopatas no Brasil e o segundo talvez seja a primeira arregimentação corporativa bem documentada dos médicos em favor de um colega. É que Joaquim Gomes de Souza acabou condenado à morte, penalidade então vigente, mas os colegas exigiram novo julgamento, cuja sentença foi o internamento em manicômio judiciário, no Rio de Janeiro, onde faleceu.

    Finalmente lembramos que Álvaro da Silveira, como botânico, estava interessado nas diferentes espécies de bambus nativos do Brasil, tanto que, em 1919, descreveu nova espécie de nosso cerrado, a Appoclada cannavieira.  Tal interesse, num musicista, é digno de nota, quando se sabe que os índios brasileiros primavam como flautistas, de flautas feitas de taquara – manifestação cultural que subsiste nas bandas de pífaros, sendo estas não só nordestinas mas também mineiras.

    Ora, nada mais coerente que seu sobrinho, o influente oftalmologista Nassim da Silveira Calixto, seja hoje apontado aos jovens estudantes de medicina e aos freqüentadores do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, como reverenciado exemplo de cultor das mais finas criações musicais, contraponto agradável e alegre ao feio mundo de hoje.  Ele mesmo foi quem, em sua aula sobre o tio, entregou aos jovens o segredo de sua rica vida interior, haurido em Schiller e transfigurada por Beethoven na Nona Sinfonia: Sondern labt uns angenehmere anstimmen und freudenvollere! (Cantemos, antes, algo mais agradável e alegre!).

     

     

    O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais