Vida, Morte e Espiritualidade – Marco Aurélio Baggio II – 2004

    VIDA, MORTE E ESPIRITUALIDADE II

    A vida é uma excrescência cósmica absolutamente absurda, que só surgiu no planeta Terra.
    Proteínas, enzimas e demais substratos cercaram-se de membranas semipermeáveis e passaram a utilizar a energia proveniente da luz solar, para manter seus sistemas metabólicos autopoiéticos distantes do equilíbrio termodinâmico, em uma exitosa aposta que arremeteu a vida a querer perdurar, depois a se reproduzir e, em seguida, a ocupar toda a pátina da superfície terrestre.
    Assim, consumindo e dissipando a abundante e gratuita energia solar, a vida encontrou, em nosso peculiar e muito específico planeta, as exclusivas condições para prevalecer. Diferenciou-se e complexificou-se em cinco reinos: Bactéria; Protoctistas; Animais; Plantas e Fungos. Há 3 milhões de espécies vivas conhecidas. Presume-se que haja um total de 30 milhões de seres vivos no planeta.
    Todos são constituídos de células. Todos consomem glicose. Todos disponibilizam energia intracelular por meio das ligações de alta energia dadas pela ligação fosfato, presente no ATP – adenosina trifosfato. Exceto as bactérias, todos os seres vivos são sexuados, isto é, compostos por dotações haplóides de um genitor macho e de uma genitora fêmea. Pelo sexo, conjugam-se as células germinativas, que darão origem a um ser vivo multicelular. Seres sexuados, com células dotadas de núcleo, estão associados à morte programada. A antiga estratégia de fundir-se para sobreviver, adotada pelos micróbios haplóides, tem um preço, que é a morte celular, ao cabo de certo transcurso de tempo.
    A morte é, assim, a mais importante afecção sexualmente transmitida.
    A morte de cada organismo individual está programada e é previsível.
    Morre-se por citocídio ou necrose celular, por causação externa. Mas, sobretudo, a inexorável ceifadeira acontece por morte celular endógena ou apoptose.
    Vive-se enquanto os processos anabólicos predominam, amplamente, sobre os igualmente presentes processos catabólicos. Lá em incerta data, falece a energia necessária para bombear íons de potássio para dentro da célula e ejetar íons de sódio e de cálcio para fora da célula.
    O núcleo celular se degrada, e o DNA se desfaz em pedaços. Não pode mais ser lido nem transcrito. A célula morre serenamente, entrando em dissolução, após haver-se dividido durante um número determinado de gerações. A morte por apoptose é silenciosa, discreta e natural. Ela ocorre quando fracassa nosso sistema autopoético, cansado de continuar a produzir-se a si mesmo. Entram então em falência múltipla as delicadas e complexas interações bioquímicas anabólicas de nosso organismo. Prevalecem os processos catabólicos que então assumem o comando do metabolismo de um corpo em dissolução.
    Todos somos cadáveres prometidos aos vermes, aos fungos e às bactérias.
    O túmulo é o grande nivelador comunista que espera cada um de nós.
    Em nossa arrogância narcísica, vivemos como se eternos fôssemos. E, por mais que nos autoludibriemos, nossa consciência aponta para o fato de que nascemos entre fezes e urina (inter feces et urinam nascimur – Santo Agostinho, In Confissões), já devedores de uma morte à natureza.
    Se somos uma soberba arquitetura orgânica, é para a morte que somos todos conservados e engordados: “vara de porcos a serem abatidos pelo acaso”. (Pallada) 2:367
    Tomamos emprestadas das reservas da biosfera todos os nossos elementos constitutivos. Serão devolvidos à mãe-natureza, átomo por átomo.
    Pertencemos ao poço ctônico, ao qual devolveremos, por decomposição cadavérica, os componentes químicos elementares de nosso corpo. Só eles podem ter pretensão a uma eternidade cósmica.
    Enquanto vivos, despendemos e dissipamos a energia de alta qualidade que nos é propiciada pela luz solar por meio da fotossíntese das plantas clorofiladas, retribuindo ao cosmos com dejetos, ruído, lamento, lixo e calor.
    Dissemos, em “Seis mutilações narcísicas”,1 que o terrível é ter de assimilar a idéia de que nosso magnífico Eu virará um cadáver entregue à sanha demolidora dos fungos e das bactérias saprófitas.
    Aquilo que nos animava – a alma, a anima – exala para sempre, junto com o nosso último suspiro.
    Animização é a atribuição de alma, de vida, a um objeto ou a um ser inanimado. Corresponde à prosopopéia, em grego, figura de estilo segundo a qual um autor ou uma autoridade empresta sentimentos humanos e palavras a animais, a mortos ou a ausentes.
    Alma seria o princípio vital que daria animação, inclinação, disposição e vontade ao ser, permitindo-lhe imprimir ação, escolha e expressão à sua trajetória existencial. Trata-se da antiga doutrina vitalista, considerada como princípio e sustentação de todas as atividades do organismo vivo, doutrina esta hoje superada.
    Sabe-se que vida implica senciência e psiquização. Cessada a primeira, não há substrato que sustente as demais.
    Quando o ser nasce, ele já traz em si, potencialmente, todas as possibilidades de exercício do bem e do mal, características da vida.
    A vida não é insuflada por um sopro proveniente de um demiurgo externo ao ser, como ensina o pensamento clerical das religiões. A vida não é dada por ninguém. Ela é uma dádiva de si a si mesma.
    Sêneca nos alerta: “- Morremos a cada dia, a cada dia falta uma parte da vida”. 2:362
    E nosso espírito – a soma integral de todos os atributos nobres representados pelo patrimônio de nossa inteligência espiritual – permanece nos livros, nos produtos que deixamos e na memória das pessoas queridas. No mais, o espírito desaparece, irremissivelmente, junto com a pessoa.
    Neste Universo em desencanto, nosso conhecido, não há lugar para abrigar tais entes – alma e espírito – que não subsistem após a morte da pessoa.
    A consoladora crendice de existir uma ilusória e jamais evidenciada “outra vida” em “outro plano”, após a morte, é a maior prova da renitente mania de os seres humanos se autoludibriarem. Enterrar pessoas, como no ritual sati dos antigos hindus, colocar nas tumbas alimentos, bebidas, utensílios, ervas medicinais, jóias, lamelas e livros jamais teve qualquer serventia para os cadáveres.
    O estudo empenhado do livro da biosfera demonstra que a vida criou a bipartição do sexo, evoluiu em bilhões de espécies, 99,4% delas já desaparecidas. Vida e morte são fenômenos exclusivos, espetáculos apenas disponíveis nesse esquisito e privilegiado planeta Terra. Único entre bilhões e bilhões de outros tantos. Todos estéreis. Sim, por mais que possa nossa vã pretensão querer entrar em contato com outros seres extraterrestres, nenhuma prova veio corroborar sua existência. Onde estão eles, que não aparecem na Praça Sete?
    O homem está na Terra há uns poucos milhões de anos. O homo sapiens sapiens existe há cerca de 150 mil anos. Só começou a fazer história há 10 mil anos. Tornou-se o mamífero mais populoso e mais dispendioso do planeta. Até hoje, a humanidade não sabe gerir seus interesses, suas coisas e seus bens. Ainda não aprendeu também o que bem fazer de sua vida. Vive guerreando ou divertindo-se, perdulariamente, distanciado de si. Dificilmente assume responsabilidade por suas escolhas. Quase sempre fracassa em estabelecer um auto-sustentador projeto de vida. Por tudo isso, à tonta mente humana apraz crer que aquilo que quer traduz a verdade e a realidade. Wishful thinking – concepção mental que abrange um anseio e um anelo – raramente tem correspondência positiva com a realidade.
    Carece, pois, de evidências o boloroso desejo de que existem “outras vidas” em “outras dimensões” ou sob “novas formas espiritualizadas”.
    Não há almas vagando pelo espaço sideral, totalmente dissociadas de um corpo vivo.
    Somos carne, e só enquanto respiramos podemos dizer que temos spiritus, pneuma, chi, nephesh, mana, ehecalt, manitu, axé, energéia, sopro, anima, espectro, entidade, daimon, “espírito de luz”, Verbo, Eloim. Psiquê.
    Cinco minutos após deixarmos de respirar, sabemos que se “desanimou” o espírito de um corpo que deixou a vida.
    No entanto, é traço de arcaísmo consolador grande parte da humanidade querer continuar acreditando em espíritos semoventes, flutuando no éter, incorpóreos, imateriais, sobrenaturais, vivendo em outros mundos jamais identificados, ou então pairando sobre a Terra, ora como “espíritos de porco”, ora como espíritos galhofeiros, ora como espíritos do bem ou da luz. Sempre associados à ânsia de imortalidade ou à possibilidade de haver sucessivos renascimentos. Todas essas convicções traduzem a humana pretensão de burlar e, se possível, ultrapassar a morte.
    Até prova em contrário, só existem alma e espírito no humano vivo, encarnado. Desencarnado, ninguém comprova a sua existência.
    Há um lugar que nos acolhe após a morte? “- Depois da morte não há nada.” (Sêneca) 4:640
    Realmente, não há nada a esperar. Morreu, finou, acabou.
    A vida se esfoi, o psíquico se apaga, o corpo é um imenso navio a ser desmantelado. O espírito exala. Ficam os elementos químicos degradados a seu estado inorgânico: pó, húmus, estrume. Memento Homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris. (“Lembra-te homem, de que és pó e ao pó retornarás.”) (Padre Antônio Vieira).6:55
    A própria Igreja não admite a idéia de se voltar ao pó?
    E não se engane, não: vida é uma só. Não dá duas safras.
    Um aviso fúnebre entre os pequenos anúncios, as fotos de um crime e a coluna social – e seu nome lá.
    Os seus “cumprem o doloroso dever de participar aos parentes e amigos o falecimento de …”
    Morrer – dormir… Dormir! Talvez sonhar.
    Não!
    Um caixão apertado recolhe seus despojos em sua imobilidade degenerescente. Término. Fim. Defunção. Extinção. Mortício. Óbito. Perecimento. Exício. Finamento. Decesso. Trespasse. Partida.
    A vida é a única e principal causa da morte.
    A morte é o verme no cerne do homem.
    A pergunta freqüente é: o que há do lado de lá?
    A resposta cabível é: não há lado de lá!
    Sim, mas morrer e ir não se sabe para onde, jazer rígido e frio, e apodrecer… (Shakespeare).
    Morte não é travessia, viagem, jornada ou passagem: é absoluta e irremissível extinção.
    A morte apenas. Sem mistificação.

    A espreita da morte é que conduz com vara de marmelo vergastante os homens, esses trôpegos, trêfegos, tolos animais que, sem seu condão, não saberiam dar valor à moeda da vida.
    E preste atenção, irmão: já é mais tarde que parece.

    Como nos alerta o imortal João Guimarães Rosa:
    “A morte de cada um já está em edital.” 3:369

    Referências bibliográficas

    1. BAGGIO, Marco Aurélio. “Seis mutilações narcísicas ou o terror da morte”. Porto Alegre: Revista Brasileira Médico-Literária, Ano I, nº 2, 1999.
    2. BARELLI, Ettore, PENNACCHIETTI, Sérgio. Dicionário de citações. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
    3. MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion. O que é vida? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
    4. RÓNAI, Paulo. Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
    5. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. In Ficção completa. Vol. 2, Rio de Janeiro: Aguilar, 1994.
    6. VIEIRA, Antônio. Sermões. São Paulo: Hedra, 2000.