Resposta inflamatória na fase crônica da forma adquirida da Doença de Chagas – Edison Reis Lopes – 2000

    Data de publicação: 27/11/2000

    PROFESSOR EDISON REIS LOPES

    Resposta inflamatória na fase crônica da forma adquirida da Doença de Chagas

    No dia 27 de novembro de 2000, ás 20 horas, na sede da Academia Mineira de Medicina, o professor Edison Reis Lopes apresentou o trabalho “Resposta inflamatória na fase crônica da forma adquirida da “Doença de Chagas”, para admissão como Acadêmico Titular da Cadeira 82, cujo Patrono é Mário Guimarães Faria e último ocupante o Acadêmico Emérito Edmundo Chapadeiro. Após o debate com os acadêmicos presentes, o trabalho foi aprovado por unanimidade.
    A seguir, transcrevemos um resumo do mesmo, ficando o original arquivado na Academia Mineira de Medicina.

    2000

    A resposta inflamatória (RI), ao lado das lesões celulares e das alterações da matriz extracelular, constitui um dos processos patológicos fundamentais da doença de Chagas (DC).

    Em seus trabalhos iniciais, Carlos Chagas já mostrava a importância da RI no miocárdio e em outros órgãos, na fase crônica da DC humana. Em 1910, ao abordar achados necroscopicos de um chagásico crônico de 28 anos, que apresentara, em vida, sinais clínicos de cardiomegalia, insuficiência cardíaca, extrasístoles freqüentes e desdobramento de segunda bulha assim se referia: “Pela autopsia: numerosos parasitas nas cellulas cardíacas – intensa miocardite intersticial … capsulas suprarenais com fócos inflamatórios evidentes … A morte deste indivíduo, realizada dous dias depois de visto pelos ilustres mestres, deu-se por assystolia aguda. As lesões de myocardite e as localizações do parasita na cellula nobre bem se accordam com as perturbações do rythmo observadas em vida. Os focos inflamatórios verificados nas capsulas suprarenais justificam, pelo seu lado, a coloração da pelle, tão bem sorprendida pelo ilustre professor Austregesilo”.

    Um ano após o próprio Chagas (1911), ao tratar da forma cardíaca da infecção chagásica crônica, assim a descrevia: “Entre as verificações histo-patologicas mais notáveis da, esquizotripanose figuram, sem dúvida, as localizações do parazito no interior do músculo cardíaco, quer do homem, quer dos animais de laboratório. No coração do homem, como verificou o Dr. Gaspar Vianna, o esquizotripano,….. No tecido conjuntivo observam-se fenômenos inflamatórios bem acentuados, generalizados a todo o músculo ou em fócos esparsos. Miocardite intensa, acompanhada de pericardite, tem sido verificada em diversas autopsias da moléstia”.

    Em conferência proferida na Academia Nacional de Medicina, em agosto de 1911, assim se expressava Carlos Chagas, ao tratar da forma cardíaca da infecção chronica chagásica: “ O elemento nobre do myocardio é, pela theoria myogênica – hoje preferida em physiologia cardíaca – a sede das principais funções do órgão, isto é, da ———-. Lesado quanto o é pelo parasito, aquele elemento, havendo ainda reação inflamatória do tecido conjuntivo intersticial, processos de myocardite intensos, fatal seria que na expressão clínica da moléstia figurasse, as vezes de modo predominante, uma síndrome cardíaca. ——–. Mais tarde, nova autopsia de um indivíduo fallecido em crise de aystolia aguda, tendo apresentado um vida as mais consideráveis perturbações do rythmo cardíaco, com extra-systoles em grande número e constantes atravez longos dias de observações, veio esclarecer definitivamente o mechanismo pathogenico e dos phenomenos cardíacos em tais casos, porquanto, nos estudos histopathologicos, numerosos parasitos foram encontrados no myocardio, aí determinando processo intenso de myocardite. Taes verificações no homem, foram amplamente repetidas pelo Dr. Gaspar Vianna e depois confirmadas nas autopsias de cobaias, animaes estes que apresentam, de modo constante, a localisação do flagellado no coração. Dest’arte adquiria base anatomica irrecusável a creação da forma cardíaca da molestia”.

    Trabalho de Vianna (1911) – a quem se devem os primeiros estudos anatomopatológicos da tripanossomiase cruzi – descreve o achado de formas amastigotas dentro das fibrocelulas cardíacas, associado ao encontro, no tecido intersticial, de uma intensa reação inflamatória acompanhada de pericardite. Neste estudo refere ter também observado zonas com infiltrado inflamatório, mas sem a presença de células parasitadas.

    Baseado nos estudos anatomopatológicos de Vianna, Chagas propôs (1911) ser a inflamação crônica do miocardio o substrato histopatológico das formas arritimicas da cardiopatia chagásica crônica.

    Diante do exposto, parece-nos que, através dos estudos iniciais de Chagas e Vianna, já era possível deduzir: 1) a importância da reação inflamatória do miocárdio para explicar as alterações cardíacas na DC; 2) a intensidade que esta miocardite pode atingir; 3) a presença de evidente parasitismo miocárdico pelo menos em algumas áreas de alguns casos; 4) a inexistência, por vezes, de relação topográfica entre as células musculares parasitadas e os focos inflamatórios; 5) que topograficamente a RI miocárdica pode ser focal ou difusa; 6) que a RI, na fase crônica da DC humana, ocorre em outros órgãos, além do coração, com intensidade variável.

    Parece também demonstrado que, desde os estudos iniciais sobre a DC, admitia-se que a RI, devida a ação direta ou indireta do Trypanossoma cruzi, desempenhava importante papel na patogênese das manifestações do chagásico crônico.

    Numerosos outros trabalhos, abordando a RI na DC crônica humana, seguiram-se aos de Chagas e Vianna. Duas razões podem, entre outras, explicar o porquê destes trabalhos terem se preocupado, quase que unicamente, com a miocardite. Em primeiro lugar por ser a forma cardíaca –a que tem como subtrato anatomopatológico uma miocardite crônica – a mais importante da DC. Segundo, porque a forma digestiva, da DC, somente foi reconhecida somente na década de 50.

    Por sua importância, não se pode deixar de mencionar os estudos de Vianna (1911), Torres (1923,1941), Andrade e Andrade (1955), Laranja e cols. (1956), Mignone (1958), bem como aqueles da escola argentina (Mazza e cols.,1939, Jorg,1956 ) e uruguaia (Ferreira Berruti, 1947), desenvolvidos nas seis primeiras décadas deste século. No referente a RI tratam, especialmente, do processo no miocárdio.

    Nos últimos anos, ainda que a maioria dos trabalhos relativos a RI na DC, continuasse a se preocupar basicamente com a miocardite, desenvolveram-se alguns estudos sistematizados, sobre a RI no tubo digestivo de chagásicos crônicos (Adad e cols.,1991, Nogueira, 1996, Adad, 1996, Lemos, 1998). Os conhecimentos, relativos a RI no sistema nervoso e em outros órgãos de chagásicos crônicos, são escassos e não consta haver estudos sistematizados que abordem o assunto.

    Considerando a importância que a RI desempenha na patogênese das principais manifestações do chagásico crônico e a experiência em cerca de 40 anos com a patologia da DC, no Triângulo Mineiro, até há pouco, região endêmica da enfermidade, acredito ter condições de elaborar uma síntese dos conhecimentos atuais sobre a RI da tripanossomiase cruzi humana adquirida. Isto pode estimular novas pesquisas visando a correlacionar a RI com os aspectos clínicos, patogenéticos e terapêuticos da DC.

    2. CARACTERÍSTICAS GERAIS DA RESPOSTA INFLAMATÓRIA NA DOENÇA DE CHAGAS

    Dois tipos de reação inflamatória ocorrem na DC crônica humana: uma focal e outra difusa. Em nossa experiência, ao menos no homem, tanto a RI focal como a difusa são observadas nas duas fases da infecção, não só no miocárdio, como também nas camadas musculares do esôfago e do cólon (Fig. 1 a 9). Parece, entretanto, não haver dúvida, de que o tipo difuso de RI ocorre, com muito maior freqüência, no miocárdio do que em outros locais do organismo.

    Com freqüência, a inflamação na DC crônica humana toma caráter fibrosante, fato especialmente evidente no miocárdio (Fig. 7). Deve-se, entretanto, relembrar que na gênese da fibrose – que é a alteração mais importante do interstício – além da inflamação atuam outros fatores como, por exemplo, os fenômenos imunitários e as alterações vasculares. É importante também realçar que a fibrose observada na miocardite crônica chagásica, é em sua maior parte, consecutiva à substituição de células musculares primariamente desaparecidas e, só em pequena parte, uma fibrose cicatricial de origem inflamatória.

    Após sua inoculação, a forma infectante do T. cruzi penetra no interior de células (especialmente macrófagos, fibroblastos, células de Schwann e miócitos estriados e lisos), onde logo se transforma em formas amastigotas e se reproduz, originando um ninho parasitário (Figs. 10A e 10B). Depois de um período de 3 a 5 dias, os amastigotas transformam-se em tripomastigotas, passando por um estágio intermediário de epimastigotas.

    Durante o ciclo evolutivo do T. cruzi, o ninho de parasitas rompe a célula parasitada, liberando no interstício as formas, íntegras ou degeneradas, epi, tripo e amastigotas do parasita e restos da célula hospedeira, os quais, atuando como imunogénos e/ou, mediadores químicos, desencadeiam uma RI focal. (Fig. 10C) Formam-se tantos microfocos inflamatórios quantos são os ninhos de parasitas e células que se rompem, podendo conferir à inflamação aspecto difuso.

    Um grande número de estudos sugere que não há um fator único envolvido na patogênese da RI devida a DC. A análise das características morfológicas da RI permite algumas deduções patogenéticas. A freqüência e a intensidade do parasitismo tecidual, no período inicial da infecção, assim como sua relação com a reação inflamatória e com as alterações celulares, justificam a importância da ação direta do T. cruzi no desencadear destas duas lesões fundamentais, na fase aguda da tripanossomíase. Nos períodos mais iniciais da inflamação, a reação focal se faz à custa de mononucleares. Poucos dias após, a estes associam-se polimorfonucleares neutrófilos e eosinófilos e, com o evoluir da infecção, o exsudato passa a ser constituído, predominantemente, por linfócitos e macrófagos. Esta mudança do caráter do infiltrado é associada, pelo menos em condições experimentais, ao aparecimento de anticorpos séricos, depósito de imunoglobinas in situ e hipocomplementemia. Ainda na fase aguda da infecção, comprovamos ser possível observar , em casos humanos, granulomas no miocárdio, além de se ter demonstrado que linfócitos sensibilizados pelo T. cruzi exercem, in vitro, ação citotóxica sobre as células musculares cardíacas. Constatou-se, ainda, que frações sub-celulares do parasita e de células miocárdicas têm propriedades antigenicas cruzadas. Paralelamente, na fase crônica, decai, acentuadamente o parasitismo tecidual. Deve-se, entretanto, realçar, desde já, que, na fase crônica da DC, tanto a parasitemia como o parasitismo tecidual não parecem ser tão raros e muito menos excepcionais como chegou-se a pensar, anos atrás. Vale ainda relembrar que a leitura dos trabalhos de Chagas e Vianna, permite deduzir a presença de um evidente parasitismo miocárdico, na fase crônica da DC, pelo menos em algumas áreas de alguns casos.

    Em 1941, Torres sugeriu um mecanismo alérgico (hoje a alergia é considerada uma reação de hipersensibilidade de tipo I) para explicar a miocardite chagásica. Poucos anos após, Muniz e Azevedo (1947) empenharam-se em comprovar experimentalmente a hipótese de Torres. As lesões obtidas por Muniz e Azevedo em M. rhesus, repetidamente inoculados com formas de cultura mortas do T. cruzi, foram focais, relativamente discretas e bastante diversas das vistas na miocardite crônica fibrosante da DC humana. Brito, em 1962, realizou estudo comparativo entre a miocardite do cobaio devida ao T. cruzi e aquela produzida por injeções repetidas de homogenatos de coração homológo com adjuvante de Freund ou por injeções deste homogenato de coração adicionado de antigenos do T. cruzi. Verificou que a miocardite chagásica não era reproduzida por injeções de homogenatos de coração puro ou com antigeno do T. cruzi, concluindo que a hipersensibilidade, mas não necessariamente a auto-imunidade, desempenha papel importante na patogenia da miocardite chagásica crônica. Na década de 70, Teixeira e Santos Buch (1974) e Teixeira e cols. (1975) conseguiram reproduzir, em coelhos inoculados com o T. cruzi, ou injetados com frações sub-celulares deste parasito, uma miocardite crônica com características de hipersensibilidade e Cossio e cols. (1976) demonstraram que linfocitos de chagásicos humanos aderem e destroem fibras cardíacas do coração do homem e de camundongos. Linfócitos de indivíduos normais não dão esta reação, e os linfócitos de chagásicos não reagem contra o fígado.
    Estas observações e várias outras surgidas nos últimos 20 anos, conduziram muitos autores a admitir que a miocardite chagásica é uma miocardite autoimune pós-infecciosa, semelhante ao que foi postulado para a miocardite por entero vírus.
    Em artigo recentemente publicado, Laguens e cols. (1999) realçam que, pesquisas desenvolvidas nos últimos anos, permitem estabelecer que: 1. existe mimetismo molecular entre o parasita e antigenos do hospedeiro; 2. no decorrer da infecção, aparecem auto- anticorpos que reconhecem epitopos cardíacos, durante a fase crônica da doença; 3. a transferência passiva de linfócitos provenientes de animais infectados em hóspedes singênicos, seja empregando células isoladas de linfonodos ou baço ou linfócitos cultivados, produz lesões inflamatórias cardíacas e neurológicas; 4. é possível induzir lesões cardíacas e nos nervos pela transferência de linfócitos de animais infectados, para animais singênicos, virgens de infecção; 5. os linfócitos B, dos infiltrados inflamatórios do coração elaboram anticorpos contra antigenos miocárdicos; 6. clones de linfócito T, isolados a partir de biópsias cardíacas humanas, mostram reatividade com antígenos cardíacos.

    Estas observações levaram vários estudiosos a admitir que a miocardite chagásica resulta de uma RI auto-imune. Neste caso, a infecção primária e a destruição de tecido, junto com a possibilidade de mimetismo molecular entre o T. cruzi e os tecidos de mamitero e de uma ativação policlonal nas fases iniciais da infecção com persistência de clones auto reativos, levariam, em alguns indivíduos, ao aparecimento de uma auto reatividade antimiocardio, que perpetuaria os mecanismos de lesão cardíaca, independente da persistência do T. cruzi.

    Julgando que esses dados seriam suficientes para imputar a auto-imunidade à patogenese da cardite chagásica crônica, chegou-se a contra indicar o uso de drogas triponossomicidas na fase crônica da infecção, baseando-se em que o emprego das mesmas seria inútil, desde que estabelecidos os mecanismos de auto-reatividade.

    Ainda há muito resta a esclarecer sobre o assunto: não temos conhecimentos que permitam estabelecer quando a reação imunitária se inicia e se ela é a principal responsável pelas graves RI que se observam, por vezes, em alguns chagásicos. Tampouco está estabelecido se, além da imunidade celular a humoral também desempenha papel na patogenese da RI do chagásico. Acresce que as características do infiltrado inflamatório que, no infectado chagásico, contém uma grande variedade de células (muitas não comprometidas com o processo de auto-reatividade) sua freqüente focalidade e asincronismo são dados contrários à hipótese de que a auto-imunidade seja, por si mesma, responsável pela perpetuação da RI no chagásico crônico.

    Torna-se ainda fundamental esclarecer qual o real papel do parasita na patogenese da RI na fase crônica da DC. Estudos desenvolvidos nos últimos anos sugerem que a negação ou mesmo a minimização do papel do T. cruzi na gênese da inflamação do chagásico crônico, pode constituir grave engano. A análise, através de anticorpos policlonais anti T. cruzi, da freqüência da intensidade e da localização do parasita em fragmentos miocárdicos de cardiopatas chagásicos crônico, permitiu detectar associação entre o infiltrado inflamatório e a presença de antigeno do T. cruzi em 87% dos casos (Higuchi e cols. , 1993). Corroborando estes dados, demonstramos (Jones e cols., 1993), com o emprego da reação de polimerase em cadeia, em fragmentos miocárdicos de sete cardiopatas chagásicos crônicos, que o T. cruzi ou porção de seu genoma estavam presentes nos focos inflamatórios em todos os casos. A pesquisa sistematizada de T. cruzi, com a técnica da peroxidase – anti – peroxidase (PAP), feita em chagásicos com megaesôfago (Adad e cols., 1991), permitiu identificar formas amastigotas do parasita, em 50% dos casos. O emprego do método de PCR para detectar fragmentos genômicos do T. cruzi, também realizado em chagásicos crônicos com megaesôfago, parece confirmar os resultados anteriormente referidos. (Vago e cols., 1999). Acresce que a análise da parasitemia, através de hemocultura, em tripanossomóticos crônicos, mostra resultados positivos entre 86 e 94% dos casos (Jörg e cols., 1993, Luz e cols., 1993) e técnicas de biologia molecular permitiram detectar antigenos plasmáticos, derivados do T. cruzi em contigentes apreciáveis de chagásicos, nos quais essa evidenciação era impossível, usando técnicas sorológicas convencionais. Finalmente, há ainda dados (Teixeira e cols., 1993) sugerindo que o freqüente parasitismo da veia central das adrenais pelo T. cruzi, guardaria relação direta com o número e a extensão dos focos inflamatórios na miocardite chagásica crônica. Os dados assinalados e outros mais sugerem que os parasitas e/ou seus antígenos desempenham papel fundamental na RI da DC. A confirmação deste último dado reforçaria consideravelmente a idéia de que o parasita participa diretamente da RI não só na fase aguda como também na crônica da DC, o que traria relevantes implicações na terapêutica da endemia. Neste sentido, cabe, finalmente, relembrar que estudos de Anes e cols. (1999) sugerem que o tratamento, com drogas triponossomicidas, feito em chagásicos crônicos assintomaticos, poderia prevenir o desenvolvimento da cardiopatia e que componentes do parasita, sejam antigenos ou fragmentos do mesmo, permanecem presentes no local da RI.

    Em suma, a RI, que constituí uma das lesões básicas observadas na DC, parece se dever a vários fatores, entre os quais o papel do parasita e da resposta imunitária celular, esta através de mecanismos de hipersensibilidade tardia e de auto imunidade. É possível que, em decorrência do predomínio de um ou outro, a inflamação adquira as diferentes feições sob as quais se apresenta nas diversas fases e formas da DC.

    3. A RESPOSTA INFLAMATÓRIA NO CORAÇÃO

    Miocardite, epicardite e endocardite parietal podem ser detectadas nos chagásicos crônicos pertencentes às formas indeterminada cardíaca, mista (cardíaca e digestiva) e com exacerbações agudas (reinfecção). Nos chagásicos crônicos que, em vida, desenvolveram as síndromes arritmica ou de insuficiência cardíaca, a RI (especialmente a miocardite) é diversa, especialmente no aspecto quantitativo, daquela que ocorre nos cardiopatas assintomáticos que falecem subitamente (morte súbita inesperada). É também diferente da observada nos tripanossomicos, com a forma indeterminada da doença. Já nos pacientes que apresentam reativação da infecção (forma com exacerbações agudas) a RI apresenta características de tipo agudo com intenso parasitismo.

    3.1 FORMA INDETERMINADA

    Informações sobre a anatomia patológica na forma indeterminada,têm sido obtidas através de necrópsias de indivíduos que vieram a falecer por outras causas, inclusive de modo violento e, mais recentemente, por biópsias endomiocárdicas.

    Trabalhando em área endêmica da DC tivemos a oportunidade de necropsiar e estudar sistematicamente 30 chagásicos que, em vida, não apresentaram sintomas e sinais da DC e que vieram a falecer de modo violento. Por serem assintomáticos, não se submeteram a exames médicos com estudos complementares que nos permitissem enquadrá-los na forma indeterminada. Entretanto, baseados em razões de ordem epidemiológica e clínica somos levados a supor que pelo menos metade deste indivíduos pertenciam a citada forma da tripanossomiase. Evidentemente, esta é uma suposição probabilística que não permite esclarecer quais indivíduos pertenciam a forma clínica referida. Como 27 dos 30 (90%) chagásicos mostraram lesões cardíacas, que serão adiante descritas, cremos ser válido afirmar que no mínimo 12 dos 15 chagásicos com a forma indeterminada da doença tinham alterações morfológicas cardíacas.

    Outro modo de abordar as alterações morfológicas – e portanto a RI – nos chagásicos humanos com a forma indeterminada é através de biópsias cardíacas.

    A seguir são descritos mais minuciosamente aspectos da RI cardíaca na forma em análise da enfermidade.

    Basicamente a epicardite, a miocardite e endocardite parietal que se observam são, na sua qualidade, semelhantes às observadas na forma cardíaca da doença (ver adiante). Em aproximadamente 80% dos casos estudados em necropsias e em 60% daqueles analisados em biópsias endomiocárdicas há cardite focal, com acometimento de epicárdio, miocárdio (Fig. 4A) e endocárdio parietal. Nos casos por nós estudados, as lesões inflamatórias, em especial, no miocárdio eram discretas. Apresentavam-se em pequenos focos (Fig. 11A), em geral isolados e bem circunscritos, disseminados ao longo de todo o folheto mas predominando no subepicárdio. No infiltrado celular, em geral, predominavam os linfócitos e plasmócitos com menor número de macrófagos, os quais infiltravam o endomisio ao longo de cada miocélula (Fig. 11B). Em correspondência com os focos havia miocitólise de fibrocélulas, além de outros fenômenos regressivos, por vezes, permanecendo apenas o sarcolema das mesmas. Em outros focos, talvez mais antigos, o número de células do infiltrado era menor e havia neoformação conjuntiva endomisial. (Fig. 8) No perimisio o infiltrado era predominantemente perivascular, limitado a periferia dos vasos de pequeno calibre. Em alguns corações, o infiltrado era mais polimorfo, encontrando-se além das células já descritas granulócitos neutrófilos e eosinófilos. Em alguns casos o processo tomava aspecto granulomatoso com presença de células gigantes plurinucleadas, em geral tipo Langhans, envolto por halo linfoplasmocitário. (Fig. 12) Em áreas distantes destes focos, em quase todos os casos, notavam-se linfócitos isolados ou em pequenos grupos, intimamente aderentes ao sarcolema das miocélulas.

    Epicardite, em nossa experiência, foi um achado constante. Era de tipo crônico produtiva, focal, em geral discreta, e por vezes propagava-se aos gânglios nervosos sub-epicardicos. Em alguns casos pudemos observar gânglios e filetes nervosos acometidos por processo inflamatório crônico, focal, com infiltração linfoplasmohistiocitária, neoformação conjuntiva cicatricial e fenômenos regressivos dos neurônios (picnose, cariorrexe, hipercromasia nuclear). Em alguns casos tem-se a impressão que a ganglionite é consecutiva à propagação inflamatória do epicárdio circujacente; em outros, a inflamação gangliomar parece primitiva. Estudo sistematizado quantitativo do sistema nervoso autônomo intracardíaco, por nós efetuado, em três chagásicos assintomáticos em vida nos quais a morte foi violenta, demonstram acentuada despopulação neuronal.

    Somente a porção parietal do endocárdio ventricular foi discretamente acometida pela inflamação em alguns destes chagásicos. A endocardite parietal caracterizava-se por vários focos de infiltrados de mononucleares e discreto espessamento do folheto.

    Cabe aqui relembrar que estudos ultra estruturais, (Andrade e cols., 1997) em cães com a forma indeterminada da DC, sugerem que as lesões inflamatórias focais cardíacas são auto limitadas, cíclicas, havendo um balanço entre a formação de novos focos inflamatórios e reabsorção dos mais antigos. Ainda, no modelo canino, demonstrou-se que as células que compõem os microfocos inflamatórios, após um certo tempo de vida, são removidas por apoptose o que ocorre simultaneamente com a degradação do excesso de matriz extracelular. Fundamentados nestes achados admitem Andrade e cols. que as lesões da miocardite focal da FI da DC, estão sujeitas a um ciclo evolutivo, auto limitado, equilibrado pelo aparecimento de novas lesões e desaparecimento de lesões mais antigas, o que permitiria longa sobrevida do hospedeiro.

    A positividade da pesquisa de anticorpos líticos e os dados clínicos e epidemiológicos na FI humana da DC, sugerem ser a mesma uma forma ativa da tripanossomíase.

    Por ser a cardite focal, em geral, discreta, não produz alterações funcionais, o que explica a ausência de sinais e sintomas, e a normalidade do eletrocardiograma convencional. Não há, tampouco, aumento da área cardíaca, como se comprova ao RX de tórax. Por outro lado, as lesões explicam os achados nos exames não-invasivos de maior sensibilidade.

    3.2 FORMA CARDÍACA

    A RI mais evidente e, ao que parece, mais importante por suas conseqüências, é a miocardite crônica fibrosante, que se mantém em atividade pela eclosão de repetidos focos inflamatórios, os quais tendem a confluir, conferindo à lesão, nas suas fases avançadas, o aspecto zonal ou difuso. (Figs. 7 e 13) Os focos inflamatórios, prevalentemente intrafasciculares ou endomisiais, estendem-se geralmente ao conjuntivo interfascicular ou à adventícia dos vasos de pequeno e médio calibres; por outro lado, focos vizinhos tendem à confluência. Os estudos microscópicos, feitos com as técnicas clássicas de coloração, indicam que na, miocardite chagásica crônica humana, o exsudato é constituído predominantemente de linfócitos e macrófagos, ao lado de menor número de eosinófilos, plasmócitos, neutrófilos e mastócitos. Com certa freqüência, alguns autores relatam casos em que o infiltrado eosinofílico toma grandes proporções, o que tem sido interpretado como sinal de reagudização do processo inflamatório. Pelas informações relevantes que podem trazer para o esclarecimento da história natural, da terapêutica, do prognóstico e do mecanismo das lesões das miocardites em geral, é de grande importância a caracterização exata das células do exsudato inflamatório miocárdico, o que se obtem especialmente com o emprego de técnicas imunohistoquímicas. Nos poucos cardiopatas chagásicos crônicos humanos estudados, observou-se que as células predominantes no exsudato inflamatório miocárdico eram linfócitos T, havendo poucos linfócitos B e macrófagos. Os estudos com material humano têm consistentemente demonstrado, (Tostes e cols. 1994) que os CD8+ são 2 a 3 vezes mais freqüentes que os CD4+, (Figs. 14 e 15), bem como que, os CD8+ aparecem mais próximos, ou aderidos às miofibras e (Fig. 16 e 17) expressam fator citotóxico Granzima A (Reis e cols. 1993). O infiltrado escalona-se ao longo do endomísio, dissociando os feixes de fibras, afastando-os entre si e dos capilares sangüíneos. Ao lado do infiltrado, existem ainda edema e congestão vênulo-capilar, esta, às vezes, acompanhada de leucocitose local; o edema contribui mais ainda para o afastamento das fibras entre si dos capilares. Os linfáticos que correm ao longo da adventícia dos vasos médios e grande calibres, mostram-se dilatados e repletos de células mononucleares.

    Já nas fases iniciais do processo, as fibras miocárdicas mostram, ao microscópio óptico, alterações diversas: degeneração hialina, edema, hipotrofia e necrose. Esses diferentes tipos de alterações celulares representam, em parte, a causa mas, também, o efeito da própria ICC. Além dessas, outra alteração extremamente interessante é a invasão de algumas fibras miocárdicas normais ou alteradas por elementos do infiltrado, os quais parecem digerir as miofibrilas e demais componentes do sarcoplasma, transformados em grumos grosseiros.

    A análise pela microscopia eletrônica de fragmentos de miocardio, obtidos em necrópsias de cardiopatas chagásicos crônicos falecidos com insuficiência cardíaca, permitem observar (Tafuri e cols. 1973), nas miocélulas as seguintes lesões: 1) alterações das mitocôndrias: distribuição desordenada, mitocondriose, aumento volumétrico, cristólise e lise da matriz, vacuolização e aumento dos grânulos miticondriais; 2) lesões das miofibrilas: afastamento com desorganização e dissociação dos feixes, miocitólise, torção e deslocamento lateral; 3) alterações do retículo endoplasmático: dilatação das cisternas, desconexão e apagamento da estrutura tubular T, com provável ruptura dos túbulos; 4) alterações do sarcolema: abaulamento e espessamento, deiscência e espessamentos dos discos intercalares. Alterações ultra-estruturais das miocélulas cardíacas, especialmente o espessamento (até 20 vezes acima do normal) das membranas basais dos miocardiócitos e a dilatação do retículo endoplasmático, associada ao seu preenchimento por material de aparência glicoprotéica, também foram descritos em material de biópsias endomiocárdicas (Milei, 1994).

    As biópsias endomiocardicas em chagásicos crônicos humanos permitiu ainda análises histoquímicas do miocárdio. Foi observado um decréscimo na concentração de todas as enzimas pesquisadas concentração elevada de fosfatasse ácida (atividade lisossômica) e da monoamina-oxidase.

    Os processos degenerativos, tanto aqueles denunciados pela microscopia eletrônica, como os perceptíveis ao microscópio óptico, são de intensidade variável, nas diversas áreas miocárdicas. Atingem fibras inclusas nos focos inflamatórios ou encerradas nas áreas de fibrose mas, ocorrem também, em fascículos não atingidos diretamente por esses dois processos. Nem sempre as miocélulas mais lesadas relacionam-se com os focos inflamatórios, o que leva a questionar que outros fatores, além da reação inflamatória, podem estar envolvidos nas alterações regressivas das fibrocélulas cardíacas, na cardiopatia chagásica.

    A freqüência com que se observam, no miocárdio de cardiopatas chagásicos crônicos, áreas de mumificação das fibras cardíacas, focos de vacuolização de miocardiocitos com seu progressivo desaparecimento (miócitólise), bem como outros achados (p. ex. micro infartos) levou à suspeita de que lesões vasculares obstrutivas possam, também, atuar na patogênese da miocardite chagásica crônica.

    Alguns autores atribuíram a alterações dos pequenos vasos, arteriolas e artérias de médio calibre (coronarite chagásica) a responsabilidade pelas “lesões isquêmicas” focais do miocárdio, na cardiopatia chagásica crônica. Outros estudos, entretanto, não confirmaram esta suposição e, no máximo, admitem que estas lesões somente contribuem para a patogênese das “lesões isquêmicas” miocardicas, naqueles casos em que há concomitância de congestão crônica e cardiomegalia significativa (desde que se aceite, que corações com mais de 500g, apresentem insuficiência coronária relativa) na cardiopatia.

    Mais recentemente, entretanto, evidências de natureza clínica e experimental, vêm subsidiando a idéia de que distúrbios isquêmicos transitórios ocorram, em nível microvascular, na cardiopatia chagásica crônica (Ramos e cols. 1999). Dentre os dados que apontam neste sentido, cabe recordar que, em várias investigações clínicas independentes, usando-se marcadores apropriados, foram documentados defeitos miocárdicos perfusionais (fixos, reversíveis ou paradoxais), durante esforço e repouso, em chagásicos com artérias coronárias angiograficamente normais. Isto foi observado na ausência de outros sinais de dano miocárdico. (Marin Neto e cols. 1999) Em resumo, pode-se concluir que o papel dessas alterações vasculares, na patogenia das lesões miocardicas, embora pareça importante, ainda necessita melhores esclarecimentos.

    Em fase mais avançada do processo, grupos de miofibrilas desaparecem totalmente em meio ao infiltrado celular, e restos celulares são observados no interior dos macrófagos. Formas amastigotas do T. cruzi raramente são vistas nesses focos. (Fig. 18 e 19)Em outras áreas, focos inflamatórios são menos destrutivos: o infiltrado diminui ou desaparece, permanecendo íntegros o arcabouço da sarcolema e do endomísio.

    Almeida (1986) detectou que, em 17 (34%) de 50 chagásicos crônicos, a inflamação adquire o tipo granulomatoso (Fig. 12) apresentando células gigantes do tipo Langhans, ou tipo corpo estranho envolvidas por histiócitos, entre os quais se interpõem quantidades variáveis de linfócitos, blastos, plasmócitos, granulócitos e restos ou Anatschkow.

    Interessante é que esta reação granulomatosa parece mais frequente nos corações de chagásicos que falecem subitamente (50%), do que naqueles tripanossomóticos com insuficiência cardíaca congestiva (11%).

    Paralelamente à diminuição do infiltrado inflamatório, o tecido conjuntivo fibroso substitui as fibras cardíacas destruídas e afasta e circunda as demais fibrocélulas, que se hipotrofiam e podem desaparecer. Em conseqüência, o conjuntivo neoformado interrompe, parcial ou totalmente, células musculares e fascículos musculares inteiros. (Fig. 1C e Fig. 8A) Esta fibrose pode ainda atingir e envolver o perimisio e unir-se à fibra de outros fascículos adjacentes, que se tornam, não só interrompidos, mas, também, fixados uns aos outros pelo conjuntivo esclerótico neoformado. A maioria das fibrocélulas cardíacas não atingidas pelos processos degenerativos – necróticos se hipertrofiam, e a intensidade desta hipertrofia parece ligada diretamente a fibrose. Dados experimentais e humanos indicam participação dos colágenos de tipo I e III e aumento do colágeno de tipo IV e da fibronectina. Também, estudos experimentais sugerem que a fibrose miocárdica pode regredir após terapêutica específica.

    A demonstração da maior presença de colágeno tipo IV, tem especial significado, quando se considera o achado ultraestrutural de espessamento das membranas basais de capilares, fibras musculares lisas de paredes de vasos e dos miocardiocitos, de até 20 vezes o normal, em casos de miocardite crônica chagásica.

    A fibrose miocárdica final dos cardiopatas chagásicos crônicos, que falecem com insuficiência cardíaca congestiva, parece representar a somatória de todas as fibroses focais e parciais que ocorrem ao longo dos anos. Em geral, encontram-se no miocárdio de um cardiopata chagásico crônico, todas as etapas evolutivas do processo, desde os pequenos focos inflamatórios, constituídos por conglomerados de mononucleares, até a fibrose final.

    A epicardite é um achado constante nos cardiopatas chagásicos crônicos. Macroscopicamente se traduz por espessamentos brancacentos, sob a forma de placas, faixas ou estrias em correspondência com as câmaras cardíacas e com a porção intrapericárdica dos grandes vasos. Apresenta-se, ainda, sob forma de pequenos módulos disseminados nas superfícies átrio ventriculares, ou ao longo dos ramos coronários (epicardite moniliforme ou em rosário). Por vezes, há formação de placa de aspecto viloso na face diafragmática do ventrículo esquerdo, próximo ao ápice. Microscopicamente, todas estas lesões têm uma mesma natureza: inflamação crônica fibrosante do tecido gorduroso subepicárdico. Além dos espessamentos citados, não é raro ocorrer epicardite fibronosa, discreta, em correspondência com áreas relacionadas a trombos.

    As lesões do endocárdio consistem na endocardite parietal na trombose e na proliferação fibroelástica. A endocardite é geralmente muito mais discreta e mais circunscrita do que as alterações dos demais folhetos. O infiltrado inflamatório, contudo, é da mesma natureza, assim como a fibrose. O encontro de parasitas não é relatado. Lesão valvular não é encontrada.

    Lesões inflamatórias são também constantes no sistema nervoso autônomo intracardíaco (SNAIC, Fig. 20). Este sistema constituído por gânglios e fibras distribuídos no tecido gorduroso do epicárdio das paredes dos átrios e do septo interatrial é, também, atingido pelo processo inflamatório com as mesmas características já descritas, originando-se ganglionite, periganglionite e neurite crônicas. A lesão inicia-se na fase aguda e contribui para a destruição neuronal que continua na fase crônica da infecção. Os neurônios destruídos são substituídos pela proliferação das células satélites que leva à formação de estruturas nodulares (satelitose); os neurônios remanescentes mostram alterações diversas: retração do pericárdio, tigrólise, hipercromasia etc.

    O sistema excito condutor é acometido basicamente pelas mesmas lesões inflamatórias que ocorrem na musculatura funcional.

    Segundo alguns, o processo inflamatório miocárdico estaria também envolvido com a patogênese da lesão vorticilar (lesão apical, lesão atrófica do vórtex).Há ainda muito a esclarecer sobre esta lesão que para alguns seria patognomica da cardiopatia chagásica. Para Almeida, (1978) o fenômeno inflamatório cardíaco seria a causa direta e primária do desenvolvimento e evolução da lesão. Raso (1964) admite que o processo inflamatório cardíaco constitui a primeira etapa de uma série de eventos que levam a lesão vorticilar.

    Nos chagásicos com morte súbita esperada, a inflamação é também a lesão fundamental, acometendo, simultaneamente, epicardio, miocárdio e endocárdio. Do ponto de vista qualitativo, o processo inflamatório tem características similares àquelas observadas e já descritas nos chagásicos falecidos após quadro de insuficiência cardíaca. Quantitativamente, as lesões são mais sutis no chagásicos com morte súbita inesperada, do que naqueles tripanossomoticos que apresentam morte súbita inesperada ou morte não súbita.

    3.2.1 A RESPOSTA INFLAMATÓRIA E MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DO CARDIOPATA CHAGÁSICO CRÔNICO

    A RI que ocorre no coração contribui, de maneira decisiva, na gênese dos três fatores anatômicos envolvidos no desencadear da insuficiência cardíaca do chagásico crônico: 1) diminuição da massa muscular miocárdica; 2) interrupção de fibras e fascículos do miocárdio e 3) despopulação neuronal (Bogliolo, 1976).

    A diminuição da massa muscular, que é continua e progressiva, resulta da inflamação, da degeneração e da destruição das fibras cardíacas. Estes dois últimos fatores, por sua vez, pelo menos em parte, se devem ao fenômeno alterativo do processo inflamatório, como decorrência da atividade de produtos das células do exsudato, das alterações da microcirculação e/ou de fenômenos imunitários.

    A interrupção de fibras e fascículos, se deve ao exsudato inflamatório e a fibrose (esta em parte de origem inflamatória). Além de promoverem o desarranjo do eletrofisiológico, tais lesões impedem os movimentos de determinado número de fibras durante a contração cardíaca. Ao lado disso, a fibrose reduz o tamanho das fibrocélulas, diminui sua eficiência, retira os pontos de apoio e forma outros, de modo desordenado. Obriga também a miocélula a tracionar massa de conjuntivo adicional, inelástico e não contrátil.

    Finalmente, a despopulação neuronal – cujo papel no desencadear da insuficiência cardíaca continua bastante questionável – resulta em grande parte das lesões inflamatórias do sistema nervoso autônomo intra-cardíaco.

    Na gênese das arritmias, a inflamação do miocárdio também parece exercer papel de importância, podendo produzir focos geradores de mecanismos de reentrância ou aumento da automaticidade ventricular. Algumas das arritmias parecem depender, pelo menos em parte, especialmente da fibrose; é o que sucede, p. ex., com a fibrilação auricular.

    O acometimento do sistema excito-condutor do coração pelo processo inflamatório, ou pela fibrose, poderia explicar os diferentes tipos de bloqueios.

    3.3 FORMA COM EXACERBAÇÕES AGUDAS

    Habitualmente, a fase crônica da DC estaciona ou evolui lentamente, quando não interrompida por morte súbita. Em 1911, Chagas descreveu que, em alguns cardiopatas crônicos, surgiam sintomas similares encontrados na fase aguda ou subaguda, tornando o prognóstico desfavorável. A esta forma clínica denominou cardiopatia chagásica crônica com exacerbações agudas. Em 1916, o mesmo Chagas julgou desnecessário manter a individualidade clínica desse grupo pelo fato de ter observado exacerbações em todas as formas crônicas da doença. Na X Reunião Anual de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas, realizada em Uberaba (MG) em 1994, aconselhou-se o emprego da designação reativação para indicar esta forma da tripanossomose cruzi.

    Nas últimas décadas, no entanto, o uso de imunodepressores, os transplantes de órgãos e o surgimento da síndrome da imunodeficiência adquirida criaram condições para a agudização da infecção pelo T. cruzi, com graves repercussões orgânicas, especialmente encefálicas e cardíacas. Em virtude disso, esta forma clínica tornou-se relativamente freqüente e deve ser considerada à parte, como sugerido inicialmente por Chagas.

    Miocardite chagásica do tipo agudo foi observada em cerca de 80% dos casos submetidos a necropsia, na qual se examinou o coração (Rocha e cols. 2000). Caracteriza-se por infiltração focal ou difusa de mononucleares (as vezes também por granulocitos neutrofilos e eosinofilos), edema intersticial e numerosos ninhos de amastigotas do T. cruzi no miocárdio (Fig. 21).

    Figura 21. Reativação da infecção chagásica A. Corte de átrio esquerdo de paciente com doença de Chagas e AIDS, mostrando miocardite difusa com numerosas formas amastigotas do T. cruzi no interior de miocélulas. H.E. 40x. No detalhe, ninho de amastigotas parasitando miocélula. B. Meningoencefalite chagásica necrotizante focal. A área delimitada no corte é mostrada em detalhe no recorte, onde se podem observar as formas amastigotas do T. cruzi. H.E. 100x

    A inflamação pode atingir o epicárdio e o endocárdio não havendo relato de parasitismo nestes folhetos. Há casos relatados em que a miocardite aguda restringia-se ao átrio direito.

    4. RESPOSTA INFLAMATÓRIA NO TUBO DIGESTIVO

    Como já se frizou na introdução desta monografia, só nas últimas décadas surgiram estudos sistematizados, analisando a RI em chagásicos com a forma digestiva da doença.

    Microscopicamente, as lesões mais características e constantes no tubo digestivo dos chagásicos crônicos humanos são as da muscular e as do sistema nervoso autônomo intra mural.

    Realizamos (Adad e cols. 1991) estudo anatomopatológico sistematizado em 56 esôfagos de chagásicos crônicos (17 com mega e 39 sem mega) e em 26 de não chagásicos. Confirmamos que as principais lesões microscópicas, na esofogapatia chagásica crônica, são as da muscular própria e as do plexo meintérico. Miosite, de intensidade variável, é achado quase constante, em esôfagos de chagásicos com mega e freqüente naqueles sem visceromegalia. (Figs. 2, 4 e 9) Observamos o processo inflamatório na muscular própria em 94,1% dos casos de megaesôfago (ME), em 64,2% dos casos sem ME e em 15,4% dos não chagásicos. Em geral, nos chagásicos, esta miosite dispunha-se em múltiplos focos e tendia a ser mais intensa e freqüente nos casos com ME. Miosite, com estas características, já havia sido descrita, em esôfagos de chagásicos, por vários autores (Tafuri e Raso, 1983; Andrade e Andrade, 1979; Koberle e Nador, 1955; Koberle, 1968). Estes dois últimos trabalhos entretanto, embora tenham relatados focos de miosite em esôfagos de chagásicos crônicos sem megas, ressaltam serem eles raros. Nós os encontramos com relativa facilidade, em nosso material.

    A miosite por nós observada, em chagásicos com ou sem ME, tinha aspecto de um processo em atividade, com degeneração e/ou necrose de miocélulas, em maior ou menor intensidade estando em 4 casos, associada à presença de formas amastigotas do T. cruzi. Fibrose da muscular, esteve presente, associada ou não à miosite, em 94,1% dos casos de ME, em 41% dos chagásicos sem megas; foi observada, também, em 19,2% dos não chagásicos. Vasculite necrosante foi detectada em um chagásico sem ME; essa lesão vascular foi também descrita em esôfagos com mega por Brito e Vasconcelos (1959).
    Achado que julgamos de difícil interpretação, é o encontro de miosite em esôfagos controles, por nós detectada em 15,5% dos não chagásicos. Suas características qualitativas eram similares às observadas nos chagásicos. Deve-se enfatizar, entretanto, que estes focos de miosite foram bem mais raros e, em geral, menores que nos chagásicos. O achado parece não ter maior significado, de modo similar ao que ocorre no coração, fígado e outras vísceras.

    Em síntese, à semelhança de miocardite chagásica crônica, a resposta inflamatória observada na muscular própria dos esôfagos dos chagásicos crônicos é uma miosite crônica fibrosante.

    Estudo similar ao por nós realizado no esôfago, foi efetuado em 1996 (ADAD), em 80 segmentos de intestino grosso, desde a transição descendente – sigmóide, até à transição reto sigmóide, 60 de chagásicos crônicos e 20 de controles não chagásicos. Dentre os 60 colons signóides, havia 38 com e 22 sem qualquer patologia intestinal. Este estudo de ADAD, comprovou que, a exemplo do que sucede no esôfago, as lesões mais características e constantes no colon dos chagásicos estudados, foram as da muscular e do SNAIM.

    Miosite da túnica muscular, em geral focal, foi bem mais frequente e mais intensa no grupo megácolon chagásico (MCC) do que nos chagásicos sem megacólon (CSMC). Também, a exemplo do que já havíamos observado nos esôfagos dos chagásicos, a miosite no cólon dos tripanossomaticos, tinha aspecto de processo ativo, com degeneração e/ou necrose de miocélulas. Deve-se frizar que, na experiência de ADAD, os focos de miosite não apresentavam relação com filetes nervosos, como descreve Nogueira (1996) em sua tese. Segundo esta última autora, a inflamação na túnica muscular do MCC seria um processo de neurite e, nos casos de inflamação mais intensa, em que há comprometimento das fibras musculares, a miosite seria ,também, secundária à neurite. Ainda segundo Adad, existe na muscular, própria do cólon de chagásicos crônicos, uma verdadeira miosite, embora possam também ocorrer focos de perineurite e/ou neurite. Para a mesma autora a fibrose na muscular dos cólons, foi, em geral, mais evidente e intensa nos casos com denervação acentuada. Esta fibrose parecia em parte substituir as miocélulas e em parte ser permisial. Ocasionalmente, a flogose adquiriu características granulomatosas. Durante o exame rotineiro dos cortes de MCC corados pelo Giemsa e HE, ADAD encontrou formas amastigotas em 2 (11,8%) casos (Figs. 22 e 23 ).

    Em resumo, a resposta inflamatória na muscular própria do cólon de chagásicos crônicos é também uma miosite crônica fibrosante.

    Tanto no esôfago como no cólon de chagásicos crônicos, com ou sem megas, há evidentes lesões do SNAIM (Fig. 9), sobre as quais tanto chamou a atenção o Professor Fritz Koberle e sua escola de Ribeirão Preto.
    As lesões plexulares são mais evidentes no plexo mientérico e parecem muito similares às já descritas do sistema nervoso autônomo intracardíaco. Há inflamação dos gânglios (ganglionite e peringanglionite) e dos nervos (neurite e perineurite) e fenômenos degenerativos dos neurônios, chegando à destruição completa deles. Estas alterações, a exemplo do já descrito no sistema nervoso autônomo intracardíaco, são focais, ocasionais e sistematizadas, mas não difusas**. Nos casos de chagásicos com megacolon, são, quase sempre, mais freqüentes e intensas do que as observadas nos tripanossomaticos sem mega. De um modo geral quanto à freqüência e intensidade da RI, bem como das lesões neuronais, os estudos existentes sugerem ser o plexo mientérico mais acometido do que o plexo submucoso.
    A análise histoquímica de esôfago e cólon (Adad, 1996, Lemos, et al., 1998) de chagásicos com megas mostrou, na muscular própria, infiltrados com predomínio de linfócitos TCD3+ e células CD 68+ com morfologia de macrofágos. A análise quantitativa de superpopulações de LT mostrou um maior número de CD4+ em relação ao número de células CD8+ (Fig. 24 e 25 ) ao contrário do que foi descrito no miocardite chagásica crônica. A presença de células TIA-1, sugere o papel de mecanismos citotóxicos na patogênese dos megas. A avaliação do fenótipo de células mononucleares no sangue periférico de chagásicos com megas (Lemos e cols. 1998), mostrou um decréscimo significativo do número absoluto de linfócitos TCD3+ e de linfócitos BCD19+, em pacientes em estágio avançado da doença. Constatou-se ainda inversão da razão CD4 : CD8, devido à diminuição do número absoluto de LTCD4+ no sangue, associada a progressão da doença. Detectou-se, ainda, que o decréscimo do número absoluto de TCD4+ ocorreu, preferencialmente, no grupo de células co-expressando CD28. Estes dados sugerem que a diminuição de células TCD4+ e C28+ possa estar associada ao desenvolvimento do mega chagásico.

    Na região do plexo mientérico, onde os focos inflamatórios se apresentam difusos, sem limites definidos, a análise do fenotipo das células inflamatórias, feita por Lemos (1998), mostrou resultados diversos dos detectados pela mesma autora, nos infiltrados da muscular própria. No infiltrado plexular, havia predomínio das células CD68+, com morfologia de macrófagos, em relação ao número de células TCD3+.

    Estes e outros achados, relatados no estudo de Lemos, sugerem que as lesões de células musculares e ganglionares no cólon de chagásicos, podem ser consequência de mecanismos citotóxicos múltiplos, desencadeados por linfócitos T citotóxicos, macrófagos e eosinofilos.

    5. RESPOSTA INFLAMATÓRIA NO SISTEMA NERVOSO

    Já foram analisadas as lesões do sistema nervoso autônomo intracardíaco e intramural do tubo digestivo. Em relação ao tecido nervoso central, é muito discutida a presença de alterações que possam constituir uma verdadeira forma crônica nervosa da doença. Entretanto, é indiscutível a presença de lesões inflamatórias focais e de parasitismo em encéfalos de alguns chagásicos crônicos necropsiados.

    Nas formas com exacerbações agudas, a manifestação mais grave é frequente, em aidéticos, é uma encefalite multifocal necrohemorragia, com intenso parasitismo tecidual (Fig. 21). Parece ocorrer em cerca de 80% dos casos fatais e somente foi descrita em chagásicos imunodeprimidos.