Ortotanásia – Luís Gonzaga do Amaral – 2006

    Clique aqui para fazer download do artigo
    Data de publicação: 09/11/2006

    Ortotanásia

    Dr. Luís Gonzaga do Amaral (Entrevistado)

    O Dr. Luís Gonzaga conversou com a reportagem do Jornal do CRM sobre a Resolução CFM Nº 1805/2006 de 09/11/2006, que autoriza a prática da ortotanásia. Ele afirma que a medida “é de fundamental importância para a prática médica, especificamente para cuidado paliativo e as limitações do tratamento para o enfermo em doença evolutiva em fase final, no sentido de aliviar as expectativas da dor física, psíquica e moral que enfrentam os enfermos e familiares, na fase final do processo existencial, a morte”.

    Como a demanda existente (pacientes terminais) estava sendo tratada em Minas e no país antes da Resolução CFM sobre a ortotanásia? O senhor já passou por essa experiência? Qual o impacto desse tipo de morte, na sua opinião?
    LG: No primeiro questionamento proposto, com certeza, posso afirmar que os enfermos recebem o tratamento usual e tradicional, sem enfrentamento mais efetivo com os questionamentos relacionados à ORTOTANÁSIA, considerando que a orientação é recente e as discussões serão estabelecidas a partir de agora. Durante aproximadamente um ano, trabalhei em um hospital de oncologia, denominado Instituto Oncológico de Guipuzcoa, na Espanha. Neste Hospital dediquei-me à oncologia ginecológica e cuidado paliativo, experiência valiosa considerando que a legislação dá suporte quanto à prática da ortotanásia, entendida como a não utilização de medidas que somente prolonguem o sofrimento do enfermo portador de patologia grave e em estado evolutivo final. Esses enfermos eram atendidos em três níveis institucionais: ambulatorial, residencial e hospitalar, prevalecendo os dois primeiros. A equipe era composta pelo médico, enfermeiro e psicólogo, este dando suporte também aos familiares do enfermo. Na nossa perspectiva o impacto é sem dúvida benéfico, principalmente para o médico que com sua atitude proporciona alívio imediato ao enfermo, no fim do processo biológico existencial, ao atingir a finitude, a morte. Estendem-se para os familiares os benefícios da atuação da equipe que atende ao enfermo e à família. O desenvolvimento científico e tecnológico permite uma assistência que não fere a dignidade do ser humano, os princípios da ética médica, da bioética e do biodireito.

    Que tipo de aparelhos são desligados na Ortotanásia?
    LG: Regra geral, a monitorização (do enfermo) e a respiração assistida, nas situações que respeitem a ética médica, a bioética e o biodireito.

    O que o senhor entende por morte digna? O que é isso?
    LG: Para considerar e conceituar o que é morte digna, é necessário, a priori, conceituar o que é uma VIDA DIGNA. Considero que a vida digna deve ser vista, analisada, sobre o prisma da saúde, como bem estar biopsicosocial do homem (ser humano), inserido no contexto político, histórico e ambiental, no sentido de possibilitar ao homem seu pleno desenvolvimento. É sabido que a plenitude da saúde viabiliza a vida, bem protegido pelo Código de Ética Médica[1] e pela Constituição da República Federativa do Brasil[2]. Qualquer atitude que venha ferir o que estabelece a Constituição e o Código de Ética, fere e desrespeita a dignidade do homem, fundamento do Estado Brasileiro. O que expusemos é suficiente para o entendimento e caracterização de Vida Digna. Retornamos ao questionamento inicial, o que é MORTE DIGNA. Regra geral, a morte digna diz respeito à observação dos princípios da ética médica, da bioética, pressupostos de grande valia que devem ser respeitados. Da ética médica, já citados, e da bioética, os princípios da autonomia, maleficência, beneficência e justiça. A todos esses princípios sobrepõe o princípio do primado do DIREITO À VIDA. Princípio da beneficência — fazer o bem para atingir o bem estar do enfermos (não causar danos). Princípio da maleficência — não causar mal — não causar dano interior. Princípio da autonomia — como princípio do respeito às pessoas. Protegendo as pessoas de autonomia diminuída, reduzida. A autonomia pressupõe a capacidade da pessoa deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir conforme sua própria decisão. No âmbito da medicina o princípio da autonomia é a necessidade de manter o enfermo informado, respeitando seus posicionamentos e crenças. Princípio da Justiça — é o princípio que garante os benefícios dos serviços de saúde, assegurados na Constituição, que tem efeitos para todos (erga omnes). Decorre do direito à vida, inerente a todo ser humano. Considerando o exposto, a MORTE DIGNA enfatiza o respeito ao enfermo, não o mantendo artificialmente conectado ao aparelho, com respiração assistida, entubado com a manutenção artificial de dados vitais, sem qualquer possibilidade de restabelecimento da saúde. A morte digna é a não agressão à dignidade do homem (ser humano), do seu direito, da sua autonomia (quando possível), da sua participação na tomada de decisão, sempre que possível. A morte digna poderá ocorrer em ambiente hospitalar ou residencial, sempre na presença dos entes queridos, familiares e pessoas do convívio, amparadas pela equipe médica assistencial, qualificada em cuidado paliativo.

    O senhor se deparou com algum caso indicado para ortotanásia depois que saiu a Resolução do CFM? Houve alguma manifestação do paciente ou da família nesse sentido?
    LG: A resolução é recente, o que ainda não permite a divulgação ampla e os possíveis questionamentos. O que posso afirmar é que antes da resolução, sempre fui solicitado para opinar a respeito de enfermos no CTI, mantidos em “vida vegetativa”, sem possibilidade de recuperação e mantidos sob monitorização dos dados vitais, geralmente entubados e com alimentação parenteral, muitas vezes neste quadro por tempo prolongado. Opinava e opino ser favorável a não manutenção deste quadro, considerando que não traz efetivamente qualquer benefício ao enfermo. Em 1996, minha querida mãe, acometida de AVC (acidente vascular cerebral), não permiti, como médico, dotado de experiência com tais enfermos que fosse monitorizada em CTI. Permaneceu em sua residência e faleceu suavemente 15 dias após o AVC, cercada do afeto dos filhos e familiares. Recebeu os cuidados adequados e faleceu aos 87 anos. Recentemente, em 2006, um outro familiar acometido de acidente de trânsito e com traumatismo craniano grave, foi inicialmente mantido em CTI, permaneceu por 72 horas, recebendo assistência devida. Discutido o caso, a manutenção da vida vegetativa não foi mais permitida pelos familiares.

    Por que há quem coloque em questão as boas intenções da resolução? Estaria por trás dessa resolução a brecha para alguma perversidade como o corte de despesas? Lembrando que o presidente Lula andou cortando verbas para a saúde…
    LG: Devemos considerar que o compromisso do médico é com o bem maior a ser protegido, que é a vida. O que se pretende com a Resolução em questão é dignificar a pessoa humana, evitando prolongados sofrimentos tanto ao paciente quanto a seus familiares. Lembramos, ainda, que “o médico não pode, em qualquer circunstância, ou sob qualquer pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, devendo evitar que quaisquer restrições ou imposições possam prejudicar a eficácia e correção de seu trabalho”, conforme disposto no art. 8º do Código de Ética Médica. Embora o descaso governamental, principalmente com a saúde (a saúde viabiliza a vida), seja evidente, permanece o preceito legal que assegura o direito à vida, à saúde, ao trabalho, à educação, à propriedade, à segurança e ao lazer, dentre outros. Nós, a sociedade e as Entidades Médicas, temos a obrigação de exigir o que está estabelecido na Constituição, o que não tem sido a prática usual, por motivos de inúmeras acomodações políticas, partidárias, da classe política do País e nossas Entidades em geral.

    Como o CRM–MG vai atuar na orientação aos médicos sobre a Ortotanásia?
    LG: O CRM, de ofício, deverá atuar através das Comissões de Ética dos Hospitais, promovendo os esclarecimentos necessários e a conduta médica estabelecida na referida resolução. Promoverá encontros regionais com a participação dos médicos e poderá promover juntamente com os órgãos assistenciais da saúde, federais, estaduais e municipais os encontros que certamente serão esclarecedores para os participantes com a presença de especialistas das áreas envolvidas, utilizando a mídia em geral para esclarecimentos à população. Poderá promover também a inserção do tema nos programas da graduação juntamente com as Faculdades de Medicina no sentido de levar o conhecimento específico na referida área. Finalmente deverá provocar as discussões em outras áreas do conhecimento, permitindo também a participação da sociedade.

    Dr. Luís Gonzaga do Amaral
    Médico criminólogo e ginecologista

    [1] Arts. 2º, 6º, 21, 46, 55, 56, 59 e 66.
    [2] Arts. 1º, 3º, 5º e 6º.

    Fonte: Site do CRMMG: http://www.crmmg.org.br/interna.php?n1=13&n2=26&referencia=ortotanasia-luis-gonzaga