Mesa Redonda: O Direito ao Aborto – 1997

    Data de publicação: 08/09/1997

    Mesa Redonda: O Direito ao Aborto

    Debate realizado no Salão Nobre da Associação Médica de Minas Gerais, no dia 08 de setembro de 1997, perante delegações médicas de diversas regiões do Estado, propiciando acaloradas discussões entre a platéia e os debatedores.

    Sua Santidade, o Papa Pio XII, foi cognominado de “o Papa dos Médicos” por ter sido o que mais se dirigiu à nossa classe, em todos os tempos. Em uma de suas mensagens, afirmou que “O médico não lida com matéria inerte, mas, ao contrário, inestimavelmente valiosa. Tal qual ele mesmo, esse paciente tem o lugar que lhe compete em alguma família, onde corações amorosos estão ansiosamente esperando”.
    Essas sábias palavras mostram a responsabilidade que o médico tem, obrigatoriamente, com seu paciente, tanto no ponto de vista estritamente clínico, como no ético e moral. Um dos setores da medicina que apresenta pontos polêmicos de solução delicada, por afetarem a harmonia social, é o do direito ao aborto, que é envolvido por dogmas religiosos, interpretações jurídicas pouco precisas e atingem a privacidade das pessoas. Os médicos encontram-se pressionados para resolver situações delicadas que ultrapassam os limites dos seus Códigos de Ética, não são previstas nos Códigos Penais, ferem concepções religiosas e passam a depender de sua consciência profissional. Os modernos métodos de diagnóstico de moléstias pré-natais, posteriores aos referidos códigos, permitem a detecção, durante a vida fetal, de moléstias incuráveis como alguns tipos de câncer e de malformações incompatíveis com a vida como a ausência do cérebro, entre outras. Será lícito esperar o nascimento de um ser que não sobreviverá e poderá por em risco a vida da mulher? Como eram situações desconhecidas dos antigos legisladores, não foram levadas em consideração na feitura das leis até hoje em vigor.
    Ninguém é a favor do aborto em geral, que vise somente à rejeição de uma gravidez indesejada, para limitar o número de filhos ou impedir o aumento da despesa familiar. Esse tipo de aborto é, no mínimo, doloroso, tanto para o corpo como para a alma. Mas há situações que merecem um estudo profundo e não podem ser revolvidas por grupos profissionais isolados, devendo toda a sociedade ser ouvida para suas soluções.
    Compete à Academia Mineira de Medicina, estatutariamente, “contribuir para o desenvolvimento da Medicina e apresentar sugestões, solicitar providências e colaborar com as autoridades oficiais competentes em benefício da Saúde Pública” e é apoiada nessas obrigações que reunimos, hoje, um grupo interdisciplinar de profissionais de reconhecida competência e incontestável honorabilidade, formado por médicos, advogados, religiosos e políticos, para, num debate aberto e de alto nível, estabelecer normas éticas a serem seguidas em benefício da dignidade humana, no caso do direito ao aborto.
    Encontram-se presentes para este debate as seguintes autoridades, por ordem alfabética:
    1. Prof. Emílio Bicalho Epiphânio – Médico, Advogado, Legista do Instituto Médico Legal, Especialista em Criminologia e Professor de Medicina Legal das Escolas de Medicina e de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
    2. Prof. José Elias Murad – Médico, Professor de Farmacologia, Ex-Diretor da Faculdade de Ciências Médicas, Deputado Federal. Representante do Congresso Nacional.
    3. Padre José Roque Junges S.J.- Sacerdote, Teólogo com pós-graduação em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Professor de Bioética e de Moral Fundamental do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus. Representante da Cúria Metropolitana.
    4. Prof. Manuel Maurício Gonçalves – Médico Vice-Presidente do Conselho Regional de Medicina, Coordenador da Residência Médica do Instituto de Previdência do Estado de Minas Gerais, Professor Adjunto de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFMG. Representante do Conselho Regional de Medicina.
    5. Prof. Mário Dias Correa – Médico, Professor Titular de Obstetrícia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Professor Emérito da Faculdade de Medicina da UFMG.
    6. Prof. Ronaldo Garcia Dias – Advogado, Professor da Faculdade de Direito Milton Campos, Diretor da Escola de Advogados da OAB, Advogado Criminalista. Conselheiro da OAB. Representante da Ordem dos Advogados do Brasil.
    Aos senhores componentes desta Mesa-redonda lembramos que a moral do médico, responsável pelo seu comportamento ético, depende de sua consciência. É ela que determina as atitudes a serem tomadas em defesa do ser humano. Tem que respeitar suas convicções religiosas e as dos pacientes, atender ás exigências dos familiares e submeter-se ás leis vigentes. Muitas vezes, por motivos compreensíveis, sob o ponto de vista da medicina, é solicitado a interromper uma gravidez e, por falta de uma orientação adequada, tem que apelar somente para o que dita a sua consciência, assumindo riscos que não são unicamente do médico.
    Nem mesmo os obstetras, que convivem mais de perto com o problema, conseguem chegar a um consenso sobre o tema. Os tabus, a pressão de sentenças judiciais que devem ser cumpridas, os limites do Código de Ética Médico, as próprias convicções do profissional tornam qualquer decisão um conflito de consciência. A situação piora quando o problema é o feto doente.
    Lembramos, também, que o direito médico, que compreende as normas que regulam suas atividades, é promulgado pelas autoridades públicas e são sobremaneira importantes para a segurança e a paz da comunidade. A falta dessas normas – para as novas perspectivas do direito ao aborto – levam a interpretações diversas, incompatíveis com a realidade atual e com o bem da comunidade. O direito médico que não levar em conta a moral médica ou a ela se opor, encerrará uma contradição e não terá o indispensável apoio da comunidade. Ambos, o direito médico e a moral médica, devem caminhar juntos, um respeitando as características do outro. O perigoso afastamento entre os dois pode levar a um positivismo jurídico exagerado, que constituirá um perigo para a ação do médico e não atenderá aos anseios da comunidade.
    Senhores e senhoras, desejando que, ao final dos nossos trabalhos tenhamos alcançado a meta pretendida, valendo-nos da sabedoria, da verdade e da ciência, declaro abertos os trabalhos do debate sobre o direito ao aborto, lembrando um pensamento de Bernard Shaw: “Num julgamento, a ira é má conselheira; a piedade é ás vezes pior, mas não devemos esquecer a misericórdia”.

    Acadêmico Fernando Araújo – Presidente da AMM

    Para fins de esclarecimento, reproduzimos algumas notas publicadas na Imprensa:
    O Juiz Corregedor de Polícia Judiciária de São Paulo, doutor Francisco José Galvão Bruno, católico, conservador e defensor intransigente do direito à vida, afirma que, pessoalmente, por razões éticas, é contra o aborto; mas, juridicamente defende a sua urgente discriminação, por não poder querer transformar a sua ética pessoal numa ética geral. Advoga a aborto para mulheres que estão gestando fetos cientificamente comprovados como inviáveis. Isto é um ato de justiça e misericórdia com essas mulheres. No Brasil o aborto é considerado crime. São criminosos o médico e a mãe que o praticam. Mas o Artigo 128, incisos I e II, do Código Penal, abre duas exceções: não é crime quando o abordo é feito para salvar a vida da mãe e não é crime quando a gravidez é decorrente de estupro. Portanto, o aborto não é totalmente proibido no Código Penal e, por outro lado, a Constituição é clara: garante a vida do brasileiro e do estrangeiro residente no Brasil e não protege absolutamente a vida do feto (Artigo 128, já citado). Existe uma contradição: para salvar a saúde mental da mãe, em caso de estupro, o aborto é permitido; para salvar a saúde mental da mãe, no caso de um feto inviável, o abordo não é permitido. Considero, por isto, que o aborto precisa ser discriminado; ele ser crime é uma grande injustiça. Sou contra o abordo como solução para planejamento familiar.
    Bussamara Neme, professor emérito das Faculdades de Medicina de São Paulo (USP) e Campinas (Unicamp) e professor-titular de obstetrícia da PUC-São Paulo. Afirma que, nos casos de estupro, as pacientes carentes de recursos econômicos, em desespero de causa, lançam mão de meios inadequados para interromper a gestação indesejada e, com freqüência, ocorrem complicações infecciosas e ou traumáticas. Lembra que o abortamento infectado é uma das principais causas de morte materna em nosso país. Alega que a moderna propedêutica permite o diagnóstico precoce da presença de conceptos vivos intra-útero de vida orgânica incompatível após o seu nascimento e, para essas condições os legisladores deveriam ampliar as atuais indicações para a prática não punitiva do abordamento. Considera injusta a legislação que prevê a criminalização de gestante que provocou ou permitiu que se lhe praticasse o abortamento. Em geral, ao optar por essa solução, a gestante angustiada encontra-se em estado emocional de alienação mental e, nessas condições, não me parece justa a lei que a criminalize.
    Rosiska de Oliveira, professora de Literatura da PUC-RJ, escritora e presidente do conselho Brasileiro dos Direitos da Mulher, pergunta como exigir de uma mulher que carregue consigo o fruto de um estupro? Como ser mãe de um feto que lhe foi despejado no ventre a golpe de violência e humilhação? Afirma que é preciso um grande desamor ou mesmo um profundo desprezo pela mulher, pedir-lhe para que se deixe morrer em nome do direito à vida do feto. E. finalmente, que a Rede Pública de saúde deve desempenhar seu papel e tratar a mulher com humanidade.
    Dr. Lucas Moreira Neves, presidente da CNBB, manifestou-se contrário à aprovação da Lei que permite aos hospitais públicos a prática do aborto em casos de estupro ou risco de vida da mãe, considerando esta medida como uma forma de facilitar a aprovação da liberação do aborto. Acha que o aborto é um atentado grave e inaceitável contra o direito fundamental à vida e por mais graves e dramáticas que sejam as razões, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano. Lembra que no caso de estupro, o ser humano concebido. É totalmente inocente e indefeso. Como puni-lo com a morte?
    Estebam Aquino Viotti, médico nefrologista. Supervisor do MG Transplantes: Sou contrário ao aborto e acho que a gravidez, mesmo de um bebê anencéfalo, deve ser mantida. Não concordo que uma gravidez de um anencéfalo seja levada a termo apenas para que os órgãos sejam doados. Como a criança só é dada como morta após a parada cárdiorrespiratória, os vários órgãos ficam inviáveis para o transplante, somente podendo ser aproveitados os tecidos e as córneas. Muitas vezes, mesmo estes podem ainda estar mal formados e impróprios para transplantes. Portanto as chances de sobrevivência dos órgãos de recém-nascidos em outros corpos são mínimas.
    José Anchieta Corrêa, professor de Ética Médica: Não devemos incentivar nem desestimular uma mulher portadora de um feto anencéfalo a levar a termo a sua gravidez, com a finalidade de doar os órgãos para transplantes. Se ela desejar, livremente, deverá ter o seu desejo respeitado. É importante lembrar que, em um mundo onde tudo é mercadoria, o corpo humano não deve ser transformado em mais uma.
    Antônio Carlos Teodoro, do SOS VIDA: A criança tem o direito de nascer, independente de ser anencéfa. Os médicos não são deuses. Só Deus tem o direito de tirar a vida.
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    O debate foi iniciado após a apresentação dos seguintes dados referentes às complicações do parto e do aborto, fornecidos pelo Ministério da Saúde:
    145 mil abortos espontâneos foram registrados nos hospitais conveniados do SUS, em 1996.
    27.675 curetagens pós-abortos foram realizadas em Minas Gerais, em 1995.
    A curetagem pós-aborto é uma das principais causas de internação em Minas Gerais, que é o terceiro Estado entre os que mais realizam curetagens pós-aborto, estando após São Paulo e Bahia.
    Nos últimos cinco anos a Justiça brasileira autorizou a realização de 1516 abortos, sendo 62 em Minas Gerais.
    A Maternidade Odete Valadares, principal maternidade pública do Estado criou normas internas para lidar com o aborto legal. Seu diretor, doutor Antônio Lages, defende a necessidade de melhorar o atendimento à mulher grávida, pois muitas mães e crianças ainda morrem aos oito meses de gravidez.
    Nos casos de aborto decorrente de estupro é essencial a apresentação da ocorrência policial e do exame de corpo delito.
    Em Belo Horizonte, em cada três mulheres com gravidez de alto risco, apenas duas conseguem vagas adequadas ao seu atendimento.

    Debate
    O histórico debate começou com a apresentação do trabalho do professor Emílio Bicalho Epiphânio, que afirmou que das cerca de 3,3 mil necropsias que o Instituto de Medicina Legal de Belo Horizonte realiza por ano, pelo menos 5% são de fetos.
    O professor José Elias Murad considera inconstitucional o projeto que autoriza os hospitais públicos a atenderem os casos de abortos, por se chocar com o Artigo 5º da Constituição, que garante o direito à vida. Promete votar contra a sua aprovação.
    O Padre José Roque Junges assegura que a polêmica em torno do aborto leva a dois pontos para os quais ainda não se tem resposta definitiva: o conflito de interesses entre a mãe e o embrião e o próprio conceito de vida. A saída para esse impasse pode estar na tentativa de conciliar a saúde da mulher com a vida do bebê. A questão é que os argumentos de quem é contra ou a favor do aborto têm-se mostrado excludentes. Não podemos simplesmente ser contra essa prática, sem questionarmos o útero social que irá abortar a criança. Por outro lado, quem aponta aborto como solução e não avança sobre as causas do problema acaba perpetuando a mentalidade abortista da sociedade. Outro ponto citado pelo padre José Roque é a tendência de se pensar que a edição de uma lei bastará para responder a toda a polêmica. Antes de lutar por leis que garantam o aborto, deveríamos lutar por leis que atacassem as suas causas, como o planejamento familiar, o apoio ás mães solteiras, a garantia de empregos para as gestantes, programas de adoção e amparo social para crianças deficientes. Ele lembra que a Igreja não combate o aborto a partir de dogmas religiosos, mas de argumentos éticos e racionais. Nesse sentido a “defesa da vida” não estaria sujeita apenas ao debate jurídico nem faria concessões ás circunstâncias sociais. Na maioria dos casos, o aborto é colocado como um conflito de direitos, entre a auto ande frustação psicológica. É ético, perante a Igreja, que adultos não sejam mantidos por aparelhos. Fica, então, a pergunta: a mesma reflexão não poderia ser aplicada em caso de anencéfalos? A criança não poderia ser desligada da mãe quando sua gestação apresenta um grande sofrimento? A Igreja ainda não se posicionou oficialmente sobre esse fato. Poderia se dizer que melhor seria que a gravidez corresse normalmente. Principalmente se a finalidade fosse a doação dos órgãos. Essa seria a opção mais ética e mais aceita pela Igreja. O problema maior seria a detecção da morte cerebral, para não tirar os órgãos de uma criança ainda viva.
    O professor Manuel Maurício Gonçalves afirma que, para cada grupo de 100 mil crianças que nascem no Brasil, pelo menos 140 mães acabam morrendo. Considera isto um absurdo, quando sabemos que 98% dessas mortes seriam evitadas por cuidados médicos adequados. E um escândalo, quando comparamos às estatísticas canadenses, que mostram apenas 4 óbitos em idêntico número de partos. Garantir o acesso ao aborto, quando a gravidez põe a mulher em risco de vida, é uma forma de assegurar que ela não seja privada de viver por estar gerando outra vida. No caso de estupro, ele alerta para o direito de se não levar adiante uma gravidez que é fruto da violência. Não se trata de fazer a apologia do aborto, mas de assegurar a possibilidade de escolha dos pais.
    O professor Mário Dias Corrêa define o obstetra como “um defensor do feto” e sustenta não haver nenhuma razão médica para se interromper uma gravidez. Nem mesmo o risco de vida da mãe. Considera que os avanços da ciência já permitem ao médico controlar as doenças da mulher que possam ser agravadas pela gestação, possibilitando o desenvolvimento suficiente do bebê até o ponto de sua retirada do útero. Ele define o aborto como a “solução cômoda” para o médico e a família, que ficam poupados da tarefa de acompanhar a mulher até o fim da gestação. E ótima, para o Estado que ficaria livre das despesas para o tratamento. O que se tem de fazer é o “planejamento familiar”, que é uma alternativa eticamente correta, barata e atuaria na prevenção de doenças ginecológicas. No caso de estupro, seus argumentos contra o aborto são mais contundentes, principalmente por envolver riscos adicionais à gravidez. Considera que “se admitimos matar um inocente, por que não matar o culpado?”. Mas a melhor alternativa seria o uso da “pílula do dia seguinte”, que é capaz de impedir que uma eventual gravidez se implante no útero da vítima. Termina afirmando que “mais hediondo que o estupro é o assassinato de um inocente sem vez, sem voz e sem voto”.
    Para o professor Ronaldo Garcia Dias, o projeto de lei apresentado pelos deputados Sandra Starling (MG) e Eduardo Jorge (SP), apenas supre a lacuna deixada pelo Ministério da Saúde que deixou de editar a portaria que regulamentaria a lei promulgada há meio século. Segundo ele a extensão do aborto não está em pauta e não se está fazendo nada mais do que regulamentar um procedimento que já é legal. Discorda de que o projeto seria inconstitucional, já que o “direito à vida” é assegurado pela Constituição, mas o Código Penal admite o aborto. Considera a legislação brasileira sobre o assunto como uma das mais restritivas do mundo e defende sua revisão, principalmente por considerá-la muito influenciada por conceitos religiosos. Mesmo assim julga que qualquer mudança só deve vir após amplos debates da sociedade. Quanto à polêmica em torno da realização do aborto legal nos hospitais públicos, ele classifica de “hipocrisia do sistema de saúde”, que arca com as conseqüências de milhares de abortos clandestinos, com suas freqüentes infecções e mortes, enquanto fica discutindo a questão.