A saúde em discussão – Jayme Neves – 2001

    Data de publicação: 24/02/2001

    A Saúde em Discussão –

    Jayme Neves

    Texto publicado no Jornal Estado de Minas em 24 de fevereiro de 2001.

    A substituição do médico generalista pelo especialista contribuiu para a decadência do ensino desta atividade.
    “Urge exigir das escolas médicas que graduem médicos com formação humana, exclusivamente, para servir pessoas humanas”

    É tempo de dar balanço à consciência. Corrijo-me. Não é essa a expressão exata. Pretendia escrever: é tempo de avaliação. Comporia melhor um artigo sobre o ensino médico de início de milênio, mas o atual governo banalizou demais o vocábulo. Avalia-se tudo e qualquer pretexto, e não chega a conclusão alguma. Já me canso de tanto ler e ouvir compromissos de ministros e seus mentores do MEC em “avaliar o desempenho institucional das escolas médicas” através de vários mecanismos – o provão, por exemplo. Na realidade, os pegagogistas médicos ainda ignoram que para formar médicos é preciso empenho de ensiná-los bem antes a pensar. Os leitores que brindam com sua atenção nesses últimos 12 anos sabem disso. Sabem também com firmeza quase estóica tenho defendido minhas idéias no espaço que o EM, generosamente, me oferta. Não atinam, talvez, o quanto desaba sobre mim a critica acriminosa, a hostilidade, a intolerância, a má fé, a incompreensão. Mas isso não importa.
    Na medida em que, durante tanto tempo (quase um século, para situar no tempo o humanista Miguel Couto, 1865-1934) tantos (MEC, Cinaem, CFM, Abem) avaliam o desempenho das escolas médicas, sobra o lugar-comum de que “só não se pode deixar de lado a qualidade”. No atual governo não é diferente: como ninguém se entende e entende menos ainda de ensino medico, tudo se degenera, se desagrega, se desorganiza. A transformação necessária, conforme a Cinaem (nesses últimos oito anos de avaliação), é mais profunda: Tem que atingir a base do ensino médico com intensas mudanças curriculares e uma nova proposta pedagógica brasileira.
    Pergunte ao povo para ver que ele é suficientemente capaz de definir as habilidades e responsabilidades do médico de família, do médico de cabeceira, do médico ao pé do leito, de que tanto necessita.
    E este médico que a sociedade exige já era conhecido no século XVII. O médico inglês Thomaz Sydenham (1624-89) foi cognominado pelos contemporâneos como “Hipócrates inglês”. Teve ele o grande mérito de reconhecer a necessidade de voltar ao bom senso e aos métodos práticos. Foi fiel aos verdadeiros princípios de Hipócrates, em que a meta suprema da medicina era a preocupação com o doente. A um amigo que lhe perguntou qual o melhor livro para um jovem medico usar como guia prático, aconselhou a leitura de “Dom Quixote”. Assim Sydenham surge não como um revolucionário violento, mas como um prático de bom senso e capaz. Ele compreendeu ser a grande necessidade da medicina a cuidadosa observação, à cabeceira do doente, dos fenômenos clínicos, e que o grande objetivo do médico devia ser o de tornar-se útil ao doente. Acompanharam-no no movimento de retorno a Hipócrates Bernardino Ramazzini, Glisson, Bonomo, Vieussens, Willis, Freind, Barthoinus e B. de Moor. Na mesma época, Georgio Baglivi (de Praxe Medica – 1696), considerado o mestre dos clínicos italianos, condensou nesta simples frase sua técnica de ensino: Que o moço saiba que nunca achará livro mais interessante e mais instrutivo do que o próprio doente.
    No século seguinte, na Alemanha, Hermann Boerhaave (1688-38),quando se tentava acomodar a medicina às construções subjetivas da filosofia, foi quem mais mereceu o título – que desejava acima de todos os outros – de “discípulo de Hipócrates” . Sua concepção da medicina resumia-se em curar o paciente e seu axioma maior o de que toda discussão teórica devia cessar à beira do leito do paciente. Boerhaave pode ser tido como o mestre dos sistemáticos, se entendemos como sistemático não o médico que se adapta a sistemas preconcebidos e conceitos antigos, mas o que procura colocar os problemas da natureza em sequência lógica, considerando o homem como parte de cosmos. Na elaboração das teorias, Boerhaave colocou em primeiro lugar o exame do doente, e em seguida, o modo de considerar a doença. Suas Institutiones Medicae (1708) foram o primeiro manual de patologia e, como seus Aforismas (1709) tiveram um número incalculável de edições e traduções – mesmo em árabe. Pelos seus discípulos, agiu sobre a medicina em países afastados: S. Cullen e John Pringle, na Inglaterra e Escócia, Gerard Van, Maixilimian Stoll, M.A. Von Pienkiz, J. Von Pienk, Leopold Auembrugger (descobridor da percusssão como método diagnóstico) na velha escola de Viena; Anton de Haen na Áustria, Peter e John Bard em Nova York , os irmãos Thomas e Phineas Bond em Pensilvânia, Jean SENAC e F.R. Quesnay na França e tantos outros.
    A história da medicina clinica no princípio do século XIX centraliza-se na França, que sob Napoleão dominou politicamente toda a Europa. Fiel às tradições escolásticas, cita-se F.J.V Broussais (1772-38). Seguiram-no, entre outros notáveis, J. N. Corvisart, Gaspar Laurent Bayle, Renê Théophile Hyacinthe Laenec, P.C. A. Louis, Richard Bright, Thomas Hodkin, William Stokes.
    Na segunda metade do século XIX e século XX, a medicina clinica se baseia nas ciências fundamentais e no desenvolvimento das especialidades. Trata-se de capítulo que se oferece um problema extremamente difícil para o historiador, não só por estar mais próximo de nós, mas porque o progresso foi muito rápido em todos os campos da medicina. As pesquisas foram tão numerosas, férteis e abundantes nas relações com as outras ciências que se descobertas e concepções da época. Também não é essa nossa preocupação, mesmo porque o tipo de médico que praticava todos os ramos da medicina tornou-se mais raro. Impossível deixar de apontar célebres internistas como H. Von Ziemden, Ernest Von Leyden, Herman Nothnagel, Miguel Couto.
    Infelizmente, o médico de família, que através de quase todo o século passado, era o amigo e o conselheiro fiel dos doentes, conhecendo sua personalidade tanto suas doenças, tornou-se sobretudo, nas cidades, menos comum e menos eficiente nas qualidades peculiares. O Estado, as comunidades, os funcionários da saúde pública, as companhias de seguros e o próprio público pediam e pedem a assistência de especialistas. Mesmo o médico das pequenas cidades do interior, que ainda praticava a policlínica, precisava muitas vezes recorrer a seus colegas especialistas. “Entretanto, será uma pena que o médico de família desapareça por completo. Por maiores que sejam as complexidades do desenvolvimento medico, parece que sempre haverá absoluta necessidade do médico, prático na arte de tratar o doente, assim como conhecedor da medicina especializada, embora, uma boa parte de sua atribuição consista em dirigir seu cliente ao especialista adequado”.
    Baseando-me no pensamento de Castiglioni e no que acima pontifiquei, ouso definir como indivíduos fracos, incompetentes e de compleições não raro frenéticas a maioria dos que se ocuparam da educação médica no País nesse último século. Como estou convencido de que a população brasileira sabe a natureza do profissional de que mais necessita, limito-me a dar aqui um testemunho. Trata-se da história de um médico digno deste nome, principalmente por exercer a medicina ao “pé do leito” ao longo de toda sua vida. Refiro-me ao Dr. J. Aristeu de Andrade que, para concorrer, recentemente, à vaga de membro da Academia Mineira de Medicina, apresentou a monografia “Relato de meio século de prática obstétrica em pequena cidade do interior (Diamantina). Esta é apenas uma pequena faceta da atividade de um médico de família e sua total identificação com as necessidades de sua comunidade: nem ousaria descrevê-la toda.
    Na monografia, uma lição de humanismo. Afinal o que é mais humano, mais natural do que o parto natural?
    Lendo-a, emocionei-me. Ao lidar com emoções, não as distingo das causadas pelos inefáveis pores-do-sol em minha terra; pelo deleite ante aos escritos de Dickens, Machado de Assis e Guimarães Rosa; diante da beleza da música de Bach, Mozart e Beethoven; em face da perfeição luminosa da Capela Sistina. Como emoções geram sentimentos, faço-os públicos para que o impacto de suas tonalidades sutis sensibilize as escolas medicas e os responsáveis pela saúde pública.
    Trata-se da história de 50 anos de vida de um médico de família, estirpe nobre e já esquecida de nossas escolas medicas. É uma obra bela e simples, embora complexa. A complexidade se situa no domínio de acuradas técnicas obstétricas, que ajudam o feto em sua jornada pelo canal do parto. Dr. José Aristeu levanta uma casuística de 8.976 prontuários de parturientes, atendidas entre 1951 e 1981, numa efetiva assistência ao parto vaginal, seguindo normas amplamente conhecidas.
    Na assistência ao parto foram apurados 7.754 partos espontâneos (normais) 879 partos operatórios (cesarianas), 343 partos a forceps (apenas de alivio). Como dados complementares, citam-se 115 partos gemelares e 98 partos prematuros. Ainda que não consultado, com clareza fundamenta o autor o “pacto para a redução das taxas de cesarianas no País”, proposto pelo Ministério da Saúde à Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais.
    Vejamos o que nos ensinam esses números:
    1) O sistema de Informações sobre nascidos vivos (MS) fornece um quadro alarmante de partos cirúrgicos e com grande risco para os recém-nascidos. As taxas são assustadoras: em vários serviços da capital, as cifras oscilam entre 66% e 75% de partos cesáreos, no hospital das Clínicas (UFMG) entre 1970 e 80 houve uma elevação de 155% de taxas de cesárea de (11,9% a 30,7%) A cesárea de repetição resulta do aforismo de Cragin (1916), a principal indicação para o parto cirúrgico.
    2) Na experiência do autor, 86,04% dos partos foram espontâneos, 9,08% de partos cesáreos e 4,05% de partos a fórceps. As indicações das cesarianas de regra dependeram das circunstâncias clinicas de cada parturiente. A mortalidade materna (de gestantes hospitalizadas) no período pesquisado foi praticamente nula.
    3) Em todos os casos, os acompanhamentos ao parto vaginal, normal foram de assistência permanente à parturiente, com avaliação periódica do colo uterino, vigilância da ruptura da bolsa ausculta fetal sistematizada. Na época inexistia a ultrassonografia. Usou-se o fórceps na parada do parto.
    4) No serviço, aboliu-se o uso de fórceps alto; não se fazia uso de antibióticos profiláticos; a hospitalização da parturiente não ultrapassa 48 horas; assistira-se a vários partos espontâneos após cesárea previa, contrariando assim o aforismo de Cragin.
    Este é o sumario de um trabalho que deve perseguir ampla divulgação no País, em que a sociedade, conivente com o médico, permitiu o rompimento das tradicionais indicações do parto normal. Permitiu também, informa Dr. Aristeu, que a qualificação do médico, antes generalista e hoje especialista, explique a mudança da conduta do parteiro para a do cirurgião obstetra. Mudou a história natural do parto? Houve interesses não obstétricos? Ao responder a estas questões, Dr. Aristeu advoga uma nova postura do médico diante da paciente que nele confia, bem como o sadio relacionamento médico-paciente.