A imortalidade acadêmica – Evaldo Alves D’Assumpção – 2002

    Data de publicação: 03/12/2002

    A IMORTALIDADE ACADÊMICA

    Evaldo A. D´Assumpção – Cirurgião Plástico

    Palestra feita na Academia Mineira de Medicina em 03 de dezembro de 2.002

    ACADEMO foi um herói ateniense que revelou aos gêmeos Castor e Polux, o local onde sua irmã Helena, princesa de Esparta, estava escondida em Ática, desde que fora raptada por Teseu. E, em homenagem a este herói, o terreno que lhe pertencia e onde ele foi sepultado, situado a noroeste de Atenas, foi transformado no Jardim de Academo e nele construído um templo dedicado a Atenas, deusa da sabedoria. E em todas as invasões de Atenas, pelos espartanos, este Jardim foi rigorosamente respeitado em homenagem àquele que ajudara na libertação de Helena de Tróia.
    Em torno do ano 387 aC, Platão reunia ali os seus discípulos, formando a primeira escola de filosofia grega, caracterizada, sobretudo, pelo pensar profundo e claro.
    O termo ACADEMIA foi utilizado, pela primeira vez, no século XV, em Florença, Itália e definia grupos de estudos de cultura clássica. Posteriormente se estendeu às escolas de ensino superior.
    Foi a partir do século XVII que esse termo passou a ser utilizado para denominar sociedades de escritores, artistas e cientistas que se reuniam para estudar e promover suas especialidades.
    No Brasil, a mais antiga academia surgiu na Bahia, no ano de 1724. Era denominada Academia Brasílica dos Esquecidos e tinha um fundo essencialmente literário e cultural.
    Em 1772, o médico José Henrique Ferreira fundou a Academia Científica do Rio de Janeiro, destinada a estudos diversos, tendo prestado significativas contribuições ao País.
    Contudo, a primeira academia médica surgiu, em nosso país, no ano de 1813, com o nome de Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. De alguns de seus membros, foram os primeiros livros didáticos publicados no Brasil.
    Dezenove anos depois, ela se transformou em Faculdade de Medicina.
    Em 30 de junho de 1829, foi fundada a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, por iniciativa do médico Joaquim Cândido Soares de Meireles. Seis anos depois, ela se tornou na Academia Imperial de Medicina e, em 19 de novembro de 1889 passou a ser a Academia Nacional de Medicina.
    Curiosamente só oito anos depois, em 1897, foi fundada a Academia Brasileira de Letras, idealizada por Medeiros e Albuquerque que, inclusive instituiu nela a praxe do uso do fardão. Sua concretização porém, se deve a Machado de Assis.
    Em 15 de dezembro de 1923 foi instituída a bandeira, selo e divisa próprios da Academia: uma coroa de louros em campo branco com a inscrição: Ad immortalitatem. (“Para a imortalidade”).
    Esta a razão de se atribuir, aos acadêmicos, a imortalidade. Ou seja, uma vez admitido na Academia, eles estão destinados a imortalidade. Contudo, a qual imortalidade se referem?
    Obviamente que não se trata da imortalidade corporal. Tamanha insensatez não caberia em intelectos acadêmicos. A imortalidade a que se refere, é aquela conseqüente à perenidade das boas obras realizadas, a imortalidade na memória das gerações que se seguirão.
    Aliás, a mesma imortalidade que grava todos aqueles que, mesmo não sendo acadêmicos de instituição, o são de pensamentos, palavras e atos.
    Todos nós viveremos na memória de nossos filhos, com certeza dos nossos netos. Porém poucos, muito poucos, serão imortais para a humanidade.
    Poucos terão o empenho pela paz de um Mahatma Gandhi, o desprendimento de uma Madre Tereza de Calcutá ou de uma irmã Dulce da Bahia, o virtuosismo musical de um Villa Lobos, o trato das letras de um Guimarães Rosa, o dom hipocrático de um Miguel Couto, de um Cícero Ferreira. Esses possuem a imortalidade de que estamos tratamos.
    Dentre esse poucos, podemos certamente acrescentar alguns nomes de nosso meio e que são, exatamente, aqueles que hoje homenageamos. Eles nos deixaram em sua expressão biológica – a que chamamos de “corpo”- mas continuam vivos em sua obra, em seu exemplo, em suas lições de vida.
    Eles são, assim, os academicamente imortais.
    Contudo, parece-nos oportuno aproveitar esse momento para falar, um pouco mais, desse tema que tanto nos incomoda, associado a outro tema que tantos questionamentos nos traz.
    O que incomoda: A MORTE.
    O que traz questionamentos: A IMORTALIDADE REAL, A VIDA ALÉM DA MORTE.
    Comecemos pela que nos incomoda.
    O que é “morte”? Consultando o Aurélio ele ensina: “ É o fim da vida animal ou vegetal. É o termo. É o fim.” Mas, o que é vida? E o próprio Aurélio responde definindo-a como “o contrário da morte”. Portanto, morte, é a ‘não vida’; e vida, é a ‘não morte’. No contraditório deixamos clara a nossa total ignorância diante do mistério da vida e da morte.
    Para os materialistas, a morte é o fim de tudo. Como dizia Sartre: “O homem não tem essência, mas apenas existência”. Portanto, quando a existência termina, tudo termina!
    Para os espiritualistas, a morte é passagem. Para alguns, passagem temporária, com direito a retorno. A vida seria múltipla como múltipla seria a morte. Para outros – e nesses eu me incluo – ela é passagem definitiva. Sem retorno. Só se morre uma vez, e depois vem a ressurreição.
    Contudo, fica no ar a questão: qualquer dessas três hipóteses seria cientificamente comprovável? A resposta é: “não” !. Somente a fé, ou a falta de fé, afirma qualquer uma delas. Somente a vivência pessoal da morte nos trará a resposta absoluta. Até então, ser ou não ser, continuará a ser: a questão!
    Por que tememos a morte?
    Sem dúvida, o mistério nos assusta. Apreciamos o conforto da certeza. Gostamos da segurança do materialmente palpável. Mas tal é impossível, se o foco de nossas reflexões for a morte.
    Ela nos apavora, tanto quanto nos fascina.
    O Homem de Neanderthal, 120 milhões de anos atrás, já refletia sobre ela. Sepultando seus mortos – como a arqueologia nos mostra – em posição fetal, com alimentos e objetos de uso diário, demonstrava ter a intuição – e não a ciência dos filósofos ou teólogos que ainda não existiam – de que uma nova vida viria depois da morte.
    A posição fetal indicava o renascimento. O sepultamento no seio da terra, indicava a devolução ao útero de Gaia – a Terra – para uma nova encubação, que antecederia a nova vida depois da morte.
    As grandes civilizações da humanidade, os Egípcios, os Sumérios, os Aztecas, os Incas e os Maias, tiveram na morte e na expectativa do após-morte, o centro de suas atenções. A mumificação, as pirâmides, os grandes templos que ainda hoje nos espantam e nos intrigam, comprovam a sua crença em uma vida depois da vida. Era imprescindível preparar-se para ela. E, por causa dela, tornaram-se imortais na história. Paradoxalmente, a morte gerou a imortalidade!
    A morte é essencial à nossa vida. Somos seres para a morte, como afirmou Heidegger. E o somos, porque é nela que nos realizamos. Não como seres materiais, mas como seres transcendentais que somos.
    A semente só tem sentido se morrer. Pois morrendo dará a árvore que produzirá flores e frutos.
    A lagarta que rasteja, disforme e repugnante, ao morrer liberta a borboleta. Com suas cores, com sua beleza mas, sobretudo com a sua liberdade para voar e alcançar os céus.
    Nós, seres limitados ao espaço e o tempo, na morte deixamos as amarras materiais e alcançamos a liberdade infinita da eternidade.
    Deixaremos os pequenos lampejos de felicidade que possuímos, entrecortados pelas dores e sofrimentos, para mergulhar no mistério infinito da inesgotável felicidade que só no eterno é possível encontrar.
    “Fantasias!”, dirão alguns, amargurados pelas limitações da ciência que cultuam e que não lhes responde as mais profundas indagações da existência.
    “Loucura!” dirão outros, revoltados pelas quotidianas amarguras do noticiário televisivo, onde se vê a fome matando populações inteiras, enquanto muitos desprezam a comida que lhes sobram nas mesas fartas.
    “Absurdo!” dirão outros mais, transtornados pela violência de filhos matando os pais, de crianças alienadas pelas drogas, de corruptos aboletados em cargos de projeção!
    “Realidade!” retrucarão os que percebem a maravilha de se ser livre – o próprio Sartre, ateu, o reconhecia, ao afirmar: “somos condenados a ser livres!”.
    Se somos livres, somos responsáveis por nossos atos. E se o somos, com eles transcenderemos os limites da materialidade para perpetuar o bem, ou o mal que fizermos.
    O bem, como coisa concreta, que existe. Assim como a luz que podemos gerar com os fótons de uma lâmpada que acendemos. E o mal, como algo inexistente, pois ele somente existe pela inexistência do bem. Como a escuridão inexiste. Nós não podemos cria-la. Ela surge quando retiramos a luz, que é concreta. A falta de luz, é a escuridão. A falta do bem, é o mal.
    Escuridão e mal, vazios que nada contêm.
    Portanto, somente o bem tem existência real. E a morte é a nossa transformação, do dualismo ser e não ser, para a realização definitiva, no ser.
    O medo da morte, é cultural.
    Vivendo numa cultura capitalista, consumista, onde cada um vale pela capacidade de consumo que tiver, e não pelo que é, muito menos pelo que produz, a idéia da morte, como uma realização do ser, necessariamente deve ser abominada. Rejeitada. Radicalmente negada.
    Se penso no SER, abandono o TER. E isso não convém a uma sociedade de consumo, onde consumir é sinônimo de ter. E ter, é sinônimo de apegar.
    Apegar, possuir, prender. Síntese do “ser dono de”. Causa de todos os nossos sofrimentos!
    Quanto mais me apego às pessoas, aos bens materiais, aos títulos que possuo, maior será o meu pavor de perde-los. Afinal, só quem se sente dono, corre o risco de perder.
    Mas, por outro lado, posso aprender a ser um zelador. Não sou dono, mas zelador do que penso possuir. Zelador e não dono de minha esposa, de meu marido, dos meus filhos. Zelador, mas não dono do meu carro, da minha casa, do meu cargo e dos meus títulos.
    Zelarei por eles, sem ser apegado a eles. Zelarei cuidadosamente, muito mais que o faria, se fosse “dono”. Pois o dono segura, estrangula, sufoca, escraviza e mata.
    Kalil Gibram dizia: “Os pais são o arco, o filho é a flecha. Cabe ao arco dar impulso e direção. Mas, depois de soltar a flecha, ela não mais pertence ao arco. Ela é livre para voar”.
    Portanto, o arco nunca chora a perda da flecha pois ela não lhe pertence. Ele apenas zela para lhe dar rumo e a força inicial. Sendo um zelador cuidadoso, o faz da melhor maneira possível. E fim.
    Também nós não deveríamos sentir perdas. Na realidade, elas não existem. São fantasias nossas.
    Criadas pela nossa cultura, pelo nosso apego!
    E assim sendo, podemos nos livrar também do apego a essa cultura que nos escraviza e faz sofrer.
    Podemos descobrir a beleza da liberdade que desejamos para nós, mas nem sempre nos dispomos a dar aos outros.
    O medo da morte, repetimos, é cultural. Portanto, podemos nos livrar dele. É uma questão de trabalho pessoal. Difícil, talvez logo, porém viável. Muitos já alcançaram essa libertação.
    Fica restando o medo do morrer, que é a forma pela qual a morte acontece..
    O medo do morrer, é que nos mantém vivos. Por causa dele não nos jogamos no mar sem saber nadar, não atravessamos uma rua sem olhar se está livre de veículos, não entramos sozinhos numa rua escura e deserta sem razão imperiosa.
    Se esse medo se faz exagerado, torna-se numa “fobia”. Portanto, uma psicopatologia que deve ser adequadamente tratada. Afinal, as fobias nos impedem de viver, naturalmente, a vida.
    Resumindo, medo da morte é cultural. Portanto superável. Medo do morrer é saudável. Desde que sem exageros, desde que não seja patológico.
    E o medo de perder? Uma conseqüência do apego. Portanto, também superável. Com trabalho, muito trabalho. Mas, repetimos, superável.

    E a imortalidade? Começamos pela morte, concluiremos com a imortalidade real.
    Poderíamos recorrer a filósofos e teólogos. Falaríamos por horas a fio. E, ainda assim, não teríamos respondido nada, de forma definitiva.
    Chamamos à outra vida, de realidade “transcendental”. E ela o é.
    Transcendental porque transcende à nossa realidade. Transcende à nossa capacidade intelectiva para alcança-la.
    Somos formados e criados no tempo e no espaço. Nosso raciocínio, assim como nossos idiomas, vivos ou mortos, são estruturados na realidade temporo-espacial. Portanto, jamais conseguiremos alcançar essa realidade, sem espaço e sem tempo.
    Para a qual não temos sequer algum vocábulo, seja lá em que idioma for, para conceitua-la adequadamente. Damos-lhe o nome de “eternidade”. Mas até esse termo, é falho. Para muitos significa um tempo demasiadamente longo. Nunca a ausência total do tempo.
    Encontramos, no mais lido dos livros, a Bíblia, uma frase de Paulo aos Coríntios, povo grego de intelectualidade, de lógica e de filosofia: “Nem o olho viu e nem o ouvido ouviu, nem jamais penetrou no coração do homem, o que Deus preparou para os que o amam”. (1Cor 2,9)
    Jamais alcançaremos esse mistério com nossos tubos de ensaio, com nossos microscópios ou com nossos computadores.
    Só os que já estão na outra vida, na eternidade, a compreendem e nela acreditam sem qualquer resquício de dúvida ou questionamento. E assim o é, porque eles a estão vivendo.
    Afinal, como também disse Paulo àquele mesmo povo: “Nesta vida permanecem a fé, a esperança e o amor; na outra vida, somente o amor permanecerá.” (1Cor13,13). A fé, é a certeza naquilo que ainda não possuímos e nem temos como provar. A fé existe aqui, mas na outra vida, não mais existirá, pois será desnecessária. Em seu lugar, estará a certeza, em sua totalidade indiscutível.
    A esperança, é o desejo de se alcançar algo. Ela existe aqui, mas na outra vida, também ela já não existirá. Em seu lugar, estará a total realização deste desejo.
    Mas o amor, este sim, persistirá. Pois é o amor, a essência da vida que alcançaremos após a morte.
    A imortalidade será no amor e pelo amor.
    Inútil é, pois, toda lucubração em torno dessa realidade.
    Melhor aproveitaremos nosso tempo,construindo nossa história nesta realidade que é nossa, aqui e agora!
    Utilizemos nossas energias, nossas forças, nossa vontade, para fazer desse mundo, um mundo melhor para se viver. Nós, nossos filhos, nossos irmãos, a humanidade toda, sem qualquer exclusão!
    Um mundo mais justo, mais fraterno, onde justiça e paz se abraçam, onde a fome, a violência, a miséria, as injustiças, tudo desapareça por completo!
    Se assim agirmos, cada um fazendo o seu papel, cada um cuidando da porta de sua casa, sem se preocupar em criticar ou censurar o vizinho por não cuidar da frente de sua casa, com certeza estaremos, nós também, a exemplo de tantos que já se transformaram – ou “se encantaram”, como disse Guimarães Rosa – construindo a nossa própria imortalidade.
    E, além da imortalidade que nos espera – crendo ou não crendo nela – deixaremos a nossa imortalidade nos frutos abundantes que ficarão no tempo e no espaço, ao qual um dia já não mais pertenceremos. Mas que servirão a muitos que nos seguirão e que também estarão construindo a sua própria imortalidade.
    Disse Hipócrates: “Ars longa, vita brevis” (A arte é longa, porém a vida é breve). Mas Sêneca contestou: “ A vida não é breve. Nós é que não sabemos dela, aproveitar bem!”
    A imortalidade acadêmica consiste, sobretudo, em saber valorizar cada momento como se fosse o único. E dar a ele todo o significado que ele realmente tem. Sem contudo se apegar a ele pois a impermanência de tudo é a característica fundamental de nossa realidade.
    Os que hoje são homenageados, nos dão sobejas provas de tal assertiva.
    *********************
    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
    1) BRANDÃO, JS – Mitologia Grega – Vol III – Ed. Vozes, Petrópolis 1989
    2) ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL – Vol 2 – SP 1995
    3) MITOLOGIA – Coleção Editora Abril, SP 1973
    4) D´ASSUMPÇÃO, EA – O sentido da Vida e da Morte – 3a. ed. – Ed. O Recado,SP 1998
    5) D´ASSUMPÇÃO,EA – Os que partem, os que ficam – 7a.ed. – Ed. Vozes 2.001
    6) D´ASSUMPÇÃO, EA – Tanatologia – Ciência da Vida e da Morte – Ed. Fumarc, BH 2.002
    7) D´ASSUMPÇÃO,EA – Morrer. E depois? – Ed. Fumarc, BH 2.002