O impacto da pandemia no ensino superior

    O coronavírus abre uma oportunidade para repensar o sistema em mais profundidade

    O fechamento das faculdades pôs o ensino superior, em todo o mundo, num dilema: fechar as portas ou tentar manter as atividades em modo virtual? A principal dificuldade de fechar é que não sabemos até quando nem como será a volta. O primeiro semestre já está perdido e provavelmente o segundo também. Dá para, de um dia para outro, passar tudo para o modo virtual? Quais serão as consequências? E o que isso pode significar, em médio e longo prazos?

    Não dá para, simplesmente, colocar as aulas tradicionais na internet e achar que tudo vai continuar como antes. O ensino à distância de qualidade requer aulas bem preparadas, alunos que possam participar e sistemas de acompanhamento e avaliação de resultados diferentes dos tradicionais. Tecnologias para isso existem, mas poucas instituições brasileiras estão preparadas para usá-las. A grande maioria dos professores, sobretudo das instituições públicas, nunca aprendeu a fazer isso. O ensino privado, nos últimos anos, ampliou muito a educação à distância, num esforço de redução de custos, depois que o crédito educativo ficou mais difícil, e hoje cerca de metade de seus alunos está nesse regime.

    Mas a proporção de estudantes que abandonam antes de terminar é grande e muitos questionam a qualidade da formação à distância, embora a da educação presencial também seja incerta. É provável que os estudantes mais jovens tenham mais facilidade de lidar com as novas tecnologias do que seus professores, mas muitos podem não ter equipamento adequando, acesso rápido à internet e lugar em casa para participar das aulas. Existe a preocupação de que, com a adoção do ensino à distância, a desigualdade no ensino superior se acentue.

    Por maiores que sejam as dificuldades, fechar as portas parece a pior das opções. O custo da paralisação não é somente o atraso do calendário escolar, mas a interrupção do processo de aprendizagem e dos vínculos dos estudantes com seus professores e colegas, que pode ser difícil de retomar, aumentando as desistências. No Brasil, com poucas exceções, com destaque para a Universidade de Campinas, as universidades públicas fecharam as portas ou só mantiveram ativos os hospitais, mas as instituições privadas continuaram a funcionar, seja porque já estavam no regime de educação à distância, seja porque conseguiram se adaptar rapidamente a essa modalidade, premidas pela necessidade de manter seus alunos estudando e pagando as mensalidades.

    Para as instituições que estão buscando se adaptar à educação remota, o que se ouve é que tem sido um aprendizado precioso, que poderá ter utilizado com muitas vantagens quando a situação se normalizar. Os professores estão descobrindo que podem usar recursos pedagógicos que tornam suas aulas mais interessantes e a interação com os estudantes pode ser mais facilitada. Os estudantes têm mais flexibilidade para organizar seu tempo e não precisam se deslocar para as universidades simplesmente para assistir
    às aulas. E os currículos tradicionais, organizados como linhas de montagem, podem ser substituídos por sequências flexíveis de estudo adaptadas a cada estudante.

    A educação presencial, olho no olho, é insubstituível quando o professor pode trabalhar com um número pequeno de alunos, mas na educação superior de massas, com grandes turmas, a educação mediada por tecnologia pode ser superior à tradicional. O problema da desigualdade no ensino superior já existia, mas os custos de dar um computador, tablet e acesso à internet para quem precisa são pequenos, e a flexibilidade e o acesso a recursos pedagógicos de qualidade podem contribuir para reduzir as desvantagens de quem mora longe, precisa trabalhar e não conseguiu entrar numa universidade de prestígio. As tecnologias permitem também que universidades colaborem compartilhando cursos, professores e materiais pedagógicos, reduzindo custos e melhorando a qualidade.

    Antes da pandemia, o ensino superior brasileiro já estava com dificuldades crescentes. As universidades públicas tinham problemas sérios de financiamento, que deverão tornar-se mais graves, e muitas das instituições privadas estavam se tornando insolventes. E 30% a 40% dos estudantes, nas faculdades públicas e privadas, abandonavam os cursos antes de terminar; metade dos formados trabalhavam em atividades que não requeriam formação superior. A pesquisa científica e a pósgraduação haviam crescido muito, mas os cursos de alto nível e as publicações científicas de alta qualidade estavam concentradas em cerca de dez instituições públicas, com as demais tendo os custos, mas não os resultados de manter todo o professorado em tempo integral. O sistema de avaliação, caro e obsoleto, não informava à sociedade quais eram os bons cursos, nem o destino de seus formados, nem se estão adquirindo as competências requeridas pela economia digital do século 21.

    Não faz sentido, depois da crise, voltar ao mesmo de antes. O coronavírus, ao lado dos grandes problemas que traz, pode ser uma oportunidade para repensar esse sistema em mais profundidade.

    Simon Schwartzman, O Estado de S.Paulo 08 de maio de 2020
    SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS