João Amílcar Salgado – “Marcelo Campos Christo – Revolucionário da cirurgia do baço”

    MARCELO CAMPOS CHRISTO
    Revolucionário da cirurgia do baço

    João Amílcar Salgado
    O cirurgião Marcelo Barroca de Campos Christo graduou-se em 1952 na Universidade Federal de Minas Gerais. Quando comecei a ter aulas de anatomia em 1955, encontrava-o diariamente em meio às mesas de dissecção ou na hora da aula expositiva, em que Liberato DiDio (ou um de seus assistentes favoritos, nomeadamente Hélcio Werneck, Jairo Carvalhaes, Antônio Zapalá e Geraldo Dângelo) exibia a nova orientação pós-Testut de didática anatômica, introduzida nesse ano pela Fundação Rockefeller. Às vezes a aula era de quem estava com investigação científica em andamento. Numa, foi a vez do Angelo Machado, ainda graduando, relatar o estudo que desenvolvia sobre o piloro íleo-ceco-cólico do macaco e noutra o Marcelo nos disse de suas pesquisas à procura da frenotomia segura e de como possibilitar a cirurgia segmentar do baço.
    O DiDio prometeu à minha turma o céu e muito mais: tínhamos luxuosas e novíssimas instalações anatômicas, um cadáver para cada dois estudantes, um instrutor para cada dupla, um museu anatômico que estava sendo montado por anatomistas-artistas e uma coleção de vinte esqueletos íntegros, isto é, cada qual com os ossos dos respectivos indivíduos (nada igual existia no mundo, porque nada igual ao hospício de Barbacena havia no mundo para suprimento de cadáveres). Ao mesmo tempo, éramos apenas 44 primeiranistas, porque o maior rigor na seleção do vestibular daquele ano visava a formar 44 professores de anatomia para as 40 escolas médicas brasileiras, sendo que os cinco melhores desses docentes ficariam em Belo Horizonte – um-a-um treinados em pesquisa de alto nível e com tese de doutorado defendida. Dos 44 da minha turma, entretanto, nenhum se tornou professor exclusivo de anatomia, mas magníficos cirurgiões foram formados. De todo esse projeto DiDio, o resultado mais revolucionário, inclusive pelo impacto internacional, foi a cirurgia segmentar do baço desenvolvida por Marcelo Campos Christo.
    Antes disso, em 1958, produziu-se a safra de teses anatômicas semeadas pelo professor DiDio, uma delas do Marcelo: PRESERVAÇÃO DE RAMOS DIAFRAGMÁTICOS DOS NERVOS FRÊNICOS NAS FRENOTOMIAS. Asssisti a defesa e concluí: ele fala da pesquisa com muita segurança e descreve a cirurgia com muita experiência – e isso não combina com sua aparência tão juvenil! Em 1961 ele apresentou outra tese à Faculdade de Medicina da então Universidade de Minas Gerais (hoje UFMG), intitulada ESPLENECTOMIAS PARCIAIS SISTEMATIZADAS RÉGLÉES, a qual foi publicada em 1962 no periódico Hospital (62:187-204), com o título Segmental resections of the spleen. Report on the first eight operated on patients. Em 1963 ele os publicou no periódico especializado Revista Brasileira de Cirurgia no artigo Anatomical and experimental basis of partial splenectomies. Pois bem, quando o Marcelo exibiu tais resultados bem sucedidos das primeiras cirurgias segmentares do baço, demonstrando, pela primeira vez na história da medicina, que tal intervenção era possível, pouca gente percebeu o significado desta façanha. Foi necessário que uma simples frase vinda do exterior desse a ela toda a dimensão que merecia: a cirurgia do baço se divide em duas eras, antes e depois de Campos Christo. E quem proferiu tal frase era aquele que era considerado a maior autoridade mundial no assunto: Leon Morgenstern, do Cedars-Sinai Medical Center, Los Angeles, EUA.
    As investigações de Morgenstern começaram quando, em 1962, ele se sentiu estimulado a tentar a esplenectomia parcial em uma paciente com enorme esplenomegalia e hiperesplenismo. Tal intento significava desafiar o dogma segundo o qual o baço era cirurgicamente intocável, daí que remover parte dele era impensável. Tudo isso porque, quando o baço sangra, sangra incontrolavelmente e a retirada de mínimo fragmento acarreta o desabamento de toda a sua estrutura orgânica. Finalmente, quando supôs que tinha conseguido resolver este obstáculo, nesse caso de baço doente (displasia mielóide), ele verifica que um cirurgião brasileiro, Marcelo Campos Christo, realizara antes, a partir de 1961, várias cirurgias com êxito, em casos de trauma: em vez da esplenectomia total que era a norma, fizera a esplenectomia parcial, poupando o órgão e suas funções. O comportamento ético de Morgenstern foi admirável: reconheceu a primazia do colega estrangeiro e, em conseqüência, ambos se tornaram não só amigos, mas aliados em favor da adoção mundial deste importante avanço científico.
    Com o baço aconteceu história semelhante à do coração, pois ambos foram alvo do tabu cirúrgico da inviolabilidade. A diferença entre um e outro é que a intocabilidade operatória do baço alcançou a segunda metade do século 20. Então Marcelo Campos Christo, que foi quem a desfez, tem direito a mérito proporcional. Morgenstern criou para ele e Marcelo o apelido de esplenófilos. E não deixa de reverenciar um terceiro desta grei que é o renomado hematologista William Crosby, autor da tradução ao inglês de LE SPLEEN DE PARIS, de Charles Baudelaire – sendo este então mais um esplenófilo.
    Em sua dedicação ao baço, Morgenstern o estudou nas artes, na culinária e na história (especialmente o tiro no baço que o presidente James Garfield dos EUA recebeu em 1881 e a esplenectomia feita por Michael De-Bakey no Xá Reza Palevi, em 1980). Nas artes, ele passou a estudar o pintor renascentista húngaro Albrecht Durer (gênio universal, uma espécie de Leonardo da Vinci do norte da Europa, para onde migrou), autor de tela clássica denominada Melancolia, e descobriu um bilhete do artista a seu médico, pelo qual, por meio de um desenho de si próprio, onde aponta o hipocôndrio esquerdo, esclarece o local de seu incômodo. O temo melancolia (que literalmente significa pletora de bile negra, sendo bile = cole e negra = melanos) remonta ao médico, poeta e filósofo pré-socrático Empédocles, outro gênio universal, nascido em Agrigento, na Sicília. Enquanto os neurocientistas de hoje localizariam a melancolia no encéfalo, os médicos, durante mil anos, a localizavam no baço (local próprio da bile negra, oposta à bile amarela, simetricamente localizada no fígado). Ainda no século 19, sob um céu também de terríveis angústias, representadas pela peste branca da tuberculose, os poetas ultra-românticos usavam o termo spleen (baço em inglês) para designar o culto (remontante a Byron) à melancolia, ao tédio, ao suicídio e ao abismo, como foi o caso do já citado Charles Baudelaire, autor de um soneto e três poemas com o mesmo nome, e do poeta brasileiro Álvares de Azevedo, autor de dois poemas MACÁRIO e SPLEEN & CHARUTOS, onde aparece o termo.
    Marcelo Campos Christo, além do posto de honra neste silogeu de esplenófilos, tem outros inestimáveis méritos, seja como extraordinário traumatologista e habilíssimo cirurgião tóraco-cardiovascular, seja como formador de gerações de especialistas do mesmo naipe. Seus discípulos e admiradores vêm nele a luz sempre acesa de vigilante pensamento crítico, inerente àquela ética que ultrapassa os limites profissionais e se debruça sobre o cenário social. Os estudantes mais jovens, ao assistirem a aula de história da medicina, em que Marcelo descreveu sua descoberta, ficaram marcados por seu comovente recato mineiro, com que descreveu passo a passo sua inigualável vitória, quase pedindo desculpas por ter chegado tão longe.
    Nisso ele não fez mais que seguir o exemplo do pai, José Carlos de Campos Christo, que, ao aceitar ser um dos Secretários de Estado do Governador Milton Campos, em 1947, recusou receber qualquer remuneração. Certo tempo depois, quando Baeta Viana angariava contribuições para criar local de amparo ao tuberculoso pobre, o retíssimo auxiliar de Campos lembrou-se dos vencimentos recusados e solicitou que fossem repostos em pauta, para serem entregues a Viana.

    O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de MG