Acadêmico Evaldo A. D’Assumpção: “Tragédias Mineiras”

    Tragédias mineiras

    Ewaldo Alves D’Assumpção*

    O lucro, as loas, as vantagens pessoais, colocam-se muito acima da vida humana.
    Assim, não há como excluir como causas, a incúria, a vaidade, a ambição, a ganância humana.
    Assim, não há como excluir como causas, a incúria, a vaidade, a ambição, a ganância humana. (MAURO PIMENTEL/AFP)

    Grandes tragédias já aconteceram em nosso Estado de Minas Gerais, contudo algumas marcaram indelevelmente a minha história. De duas, participei ativamente nas tentativas de salvamento de suas vítimas. As duas seguintes, acompanhei de longe, depois da minha aposentadoria como médico, e minha mudança, há 10 anos, para o Estado do Espírito Santo.

    A primeira delas ocorreu nos anos 60, quando eu era ainda estudante de medicina. Estagiário do Pronto Socorro, ajudei no atendimento às vítimas de um choque de duas composições ferroviárias. No local, vagões espalhados e despedaçados, corpos e partes de corpos por todo lado, alguns presos nas ferragens retorcidas. No retorno, questionava-me sobre a responsabilidade daquele massacre. Certamente alguém que não fez o adequado desvio dos trilhos na área de manobras, levando as duas composições se chocarem, e deixar toneladas de ferro retorcido, corpos destroçados e sangue derramado. Não sei o que aconteceu depois.

    A segunda, foi em 4 de fevereiro de 1971, bem em frente ao Hospital Sarah Kubitscheck, na avenida Amazonas, no bairro Gameleira, onde eu coordenava o Serviço de Cirurgia Plástica. Quando ouvi no rádio do meu carro que o Pavilhão de Exposições, que estava em final de construção havia desabado, fui imediatamente para lá. O cenário era devastador. A construção, projetada por Niemeyer, tinha duas enormes lajes, bem ao seu estilo. A mais alta havia desmoronado sobre a primeira, e as duas desabaram sobre o pátio interno, onde os operários almoçavam à sua sombra. Alguns, poucos, conseguiram saltar fora quando começou o desabamento, mas a maioria foi esmagada por toneladas de cimento e ferro. Participei da retirada de sobreviventes, alguns depois de precariamente anestesiados e amputadas as suas pernas que estavam presas sob os escombros. Não havendo em BH um só guindaste capaz de levantar aquelas enormes peças, tiveram de buscar um que estava em obras da construtora Mendes Júnior, em Juiz de Fora. Vários corpos ficaram soterrados até a chegada do maquinário. O número oficial de vítimas foi de 79 mortos e 50 gravemente feridos ou mutilados. Mas dizia-se que haviam muitos outros operários não registrados. Segundo ouvi de alguns operários que atendi, a causa do desabamento teria sido a ordem dada por um dos engenheiros da construtora, que viera do Rio especialmente para acelerar a obra, pois o governador queria inaugurá-la antes do final do seu mandato, em 15 de março de 1971. Segundo esses operários, o estaqueamento das lajes foram removidos precocemente, e a machadadas, mesmo com os protestos do encarregado, que teve de cumprir as ordens. A responsabilidade do acidente ficou para o Estado de MG, e parte para a Construtora, de forma genérica. Se houve punições, desconheço.

    A terceira, foi em 5 de novembro de 2015, com o rompimento da enorme barragem de rejeitos de mineração da Samarco, em Mariana, MG. Um verdadeiro tsunami de lama e resíduos arrasou o distrito de Bento Rodrigues, resultando oficialmente em 18 mortos e 1 desaparecido. Contaminou as águas do rio Doce, afetando 230 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo, retirando o ganha-pão de centenas de ribeirinhos. Até hoje não foram definidos os culpados e nem as vítimas foram adequadamente ressarcidas.

    Menos de 4 anos depois, em 25 de janeiro de 2019, outra barragem se rompeu em Brumadinho, MG, essa pertencendo à Cia. Vale do Rio Doce, coproprietária da Samarco. Dessa vez o volume dos rejeitos era menor, contudo o morticínio foi bem maior. Até a redação desse artigo, já haviam mais de 100 mortos localizados, e quase três centenas de desaparecidos. Talvez para nunca serem encontrados, pois supõe-se estarem sepultados sob mais de 5 metros da lama de rejeitos. Centenas de famílias enlutadas, vi noticiários dando conta de que a Vale estaria trazendo equipes de médicos e psicólogos de um famoso hospital de São Paulo, para lhes dar assistência. Achei estranho não procurarem tais recursos em Minas, onde ocorreu o desastre, considerando que só para o atendimento de catástrofes e enlutados, existem profissionais de elevada competência em Belo Horizonte. Quando ainda em atividade, trouxe para o nosso Estado, em 1978, o trabalho denominado Tanatologia, exercido por médicos, psicólogos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, voltado para esse tipo de atendimento. Dei cursos, seminários, escrevi vários livros, entre eles “Sobre o viver e o morrer”, onde em seu capítulo 7º abordo exatamente o atendimento em grandes catástrofes. Aposentado, deixei um legado de vários grupos independentes atuando nessa área, hoje com muito mais conhecimentos e experiência do que há anos, quando deixei a capital mineira. No entanto, até onde sei nenhum deles foi procurado para ajudar na difícil tarefa de acolher tantas famílias enlutadas. Afinal, dizem que “santo de casa não faz milagres”….

    Por outro lado, continuo questionando o porquê dessas catástrofes. Certamente a impunidade, especialmente dos principais responsáveis, dos intermediários e fiscais, sabe Deus a custo de que vultosas propinas, na melhor das hipóteses desleixaram de indispensáveis e rigorosas fiscalizações, que certamente teriam evitado essas tragédias. O problema é que, se assim o fizessem, gerariam custos bem maiores aos principais interessados. Assim, não há como excluir como causas, a incúria, a vaidade, a ambição, a ganância humana. O lucro, as loas, as vantagens pessoais, colocam-se muito acima da vida humana, cujo valor só existe, para alguns, como mão de obra, como desprezíveis meios para se alcançar, rapidamente e sem maiores esforços, todos os frutos exigidos por insaciável ambição.

    *Evaldo D’Assumpção é médico e escritor. Artigo publicado no semanário eletrônico “Dom Total”, em 3/02/2019: http://domtotal.com/noticia/1329606/2019/02/tragedias-mineiras/