Academia perde seu Membro Emérito, prof. Arnaldo Elian

    Faleceu no último dia 3 de maio o Membro Emérito da AMM, prof. Arnaldo Elian, um dos maiores expoentes da medicina mineira e de renome internacional.

    Ex-presidente da Sociedade Mineira de Cardiologia (gestão 1956-57) e da Sociedade Brasileira de Cardiologia (gestão 1962-63), formado na faculdade de Medicina da UFMG , em 1948, prof. Arnaldo Elian conduziu estudos célebres e mundialmente reconhecidos, tais como o da esquistossomose mansoni pulmonar, o do prognóstico do infarto agudo do miocárdio e vários outros.

    Como professor da faculdade que o formou, foi um incansável crítico das dificuldades pelas quais os pesquisadores brasileiros sofriam.

    A Academia Mineira de Medicina, enlutada, envia à família do ilustre prof. Arnaldo as mais sinceras condolências.

    Fonte: Sociedade Mineira de Cardiologia

    Leia abaixo texto do prof. João Amílcar Salgado sobre o prof. Arnaldo Elian.

    ARNALDO ELIAN – INSIGNE PROPEDEUTA

    João Amílcar Salgado

    Em 1961, Arnaldo Elian integrava a equipe do professor João Galizzi, catedrático de Clínica Propedêutica Médica da então Universidade de Minas Gerais (hoje UFMG). Sendo eu recém-chegado médico-bolsista (hoje R1), ele me convidou para ajudá-lo a converter uma fibrilação atrial recém-instalada. Nessa época a conversão se fazia trabalhosamente, pois a monitorização era feita por registro gráfico num grande eletrocardiógrafo a válvula. Percebendo minha admiração por sua tranquila destreza, explicou que, nos EUA, ele era o preferido do chefe para aquela tarefa. Naquele país o Arnaldo recebeu treinamento nas universidades de Georgetown e de West Virginia.
    Data daí nossa amizade e minha condição de seu eterno discípulo. Demais, como estudioso da história da medicina, me entusiasmava estar tão próximo de quem carregava consigo as medicinas árabe e armênia. Nestorianos, armênios, sírio-libaneses e, principalmente, abássidas cometeram a proeza de intermediar o nexo entre a tradição egipcio-sumério-helênica e a medicina renascentista.
    Sim, desde essa época me fiz genealogista dos vínculos entre gerações de cientistas. Tanto assim que depois estimulei Luiz Savassi Rocha a documentar a aristocrática ascendência daqueles de nós que fomos aprendizes junto a Bogliolo, a qual nos faz remontar a Morgagni e a Galileu. Fenômeno similar se encontra nos dados de Ênio Cardillo referentes a ancestrais científicos, como Lavoisier, Gay-Lussac e Liebig, aos quais nos remete Baeta Viana.
    No caso de Elian, há outra vertente genealógica, esta norteamericana, muito honrosa para nós seus pupilos. Sendo ele discípulo e amigo de Procter Harvey, isso nos transforma em bisnetos científicos de Samuel Levine, trinetos de Paul White e tetranetos de William Osler. A pós-graduação ianque de Arnaldo Elian foi feita ao lado de outro brilhante mineiro, Adauto Barbosa Lima, que veio a ser o cardiologista da primeira cirurgia brasileira realizada com dispositivo circulatório extracorpóreo. Mais tarde, em 1980, nos EUA, muito me emocionou estar diante do manequim revolucionário projetado pelo próprio Harvey, que simulava qualquer quadro cardiológico, do qual, salvo engano, foram confeccionados apenas dois modelos experimentais. Ali, então, fomos convidados a testá-lo, o Antônio Dilson Fernandes e eu. Coincidentemente, Dilson era raro talento polivalente que Elian muito admirava, pois era fisiologista, clínico, cirurgião, músico e humorista, mas que cedo nos deixou.
    Ainda em 1961 foi internada na Propedêutica a histórica paciente Berenice, que ficou a meus cuidados, com a participação do Celso Afonso de Oliveira e do estudante Adailton de Campos Belo, sob a estreita supervisão do professor João Galizzi. Arnaldo Elian foi então solicitado a examinar e reexaminar os eletrocardiogramas dela, os quais exibiam enigmático PR curto, do qual ele sabiamente descartou origem chagásica.
    Em 1962 o Arnaldo internou, em leito aos meus cuidados, paciente que também se tornaria histórico, pois logo seria objeto de reportagens na revista O Cruzeiro e em todos os jornais, como o primeiro paciente brasileiro a receber, com sucesso, um marcapasso cardíaco. Charles Hufnagel (primeiro no mundo em prótese de válvula aórtica), João Rezende Alves, Jesus Zerbini, Sebastião Rabelo e Arnaldo Elian estrelaram o acontecimento, acolitados por três colegas da mesma turma de 1960: Sérgio Almeida (que fez o pós-operatório), Gilberto Lino e eu.
    Isto se deu no 18o Congresso Brasileiro de Cardiologia, que incluiu mais outro acontecimento histórico, desta vez político. O país vinha agitado pela renúncia, um ano antes, do presidente Jânio Quadros. Os estudantes, liderados por Henrique Santillo (mais tarde governador de Goiás e ministro da saúde) aproveitaram o palco daquele encontro, sob holofotes nacionais e com convidados internacionais, e ocuparam o saguão da Faculdade, de modo a impedir a solene abertura na manhã seguinte. Arnaldo e Afonso Moreira (este em lágrimas) ouviram dos estudantes que, apesar de serem mestres muito queridos, não seriam atendidos. Restou a nosso Elian, presidente do conclave, procurar a contragosto o governador Magalhães Pinto para que fizesse desocupar o local, mas o mandatário de Minas alegou que estava proibido, pelo presidente da republica João Goulart, de qualquer ação contra operários ou estudantes. Pinto sugeriu, entretanto, que apelasse ao comandante das tropas federais, insinuando que este desobedeceria a Goulart. Foi o que aconteceu. Isso significa que, se a resposta desobediente a Jango, dada pelo comandante ao apelo desesperado de nosso Elian, tivesse sido interpretada corretamente pelos desatentos janguistas, talvez os vinte anos de ditadura tivessem sido evitados.
    Desde então, bem conhecido grupo de asseclas do Elian veio sendo formado a partir de Antônio Moretzsohn, Celmo Porto, Edson Razuk e minha pessoa. Depois vieram Cid Veloso, Carlos Alberto Barros Santos, Álvaro Piancastelli, Dilson Fernandes, Cláudio Sales, Antônio Cândido e outros tantos discípulos-de-discípulos. Além de aprendermos com ele medicina interna e cardiologia da melhor qualidade, a pouco fomos descobrindo seus segredos fora da medicina. Tremendo conhecedor de comida e bebida finas, freqüentador dos mais refinados restaurantes do primeiro mundo e do Brasil, poderia escrever livros sobre qualquer desses temas. Foi, aliás, num restaurante refinado do Rio que sua semelhança crescente com o também árabe Jorge Amado (Ahmed de origem) teve momento célebre: a metade dos fãs tomou o verdadeiro Jorge por sósia e veio pedir autógrafos a nosso Arnaldo.
    Outra faceta desse gentleman cumulado de mineirice foi revelada quando comandou o Colegiado de Curso Médico, em momento mais que turbulento da inovação curricular transcorrida na UFMG, entre 1975 e 85, infelizmente hoje abortada. Era então presidente do diretório estudantil o insurreto e destemido Jésus Fernandes. Nessa memorável cruzada, descobrimos então que o notável cardiologista escondia um coordenador hábil, um negociador inesgotável, enfim um Saladino redivivo em plena ditadura militar. Graças a ele, todos os ferozes adversários de então são hoje amigos sem mágoa. Nisso ele não fazia mais que espelhar dois outros médicos-políticos de qualidades análogas, de que era fraternal amigo e conselheiro: o udenista Dario Faria Tavares e o pessedista Eduardo Levindo Coelho.
    A antiga Clínica Propedêutica Médica, amenamente chefiada por João Galizzi, tornou-se legendária pelo equilíbrio entre habilidades, conhecimentos e, principalmente, atitudes – absorvidos pelos alunos no curto prazo de um ano, mas levados permanentes pela vida em fora. Galizzi, o reverenciado herdeiro da mais legítima tradição greco-latina, teve por grão-vizir Arnaldo Elian, esse insigne depositário da mais brilhante herança levantina, sem a qual não existiria a medicina ocidental moderna.

    O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais