A persistência da imunidade e o desconfinamento dos sobreviventes da covid-19

    Por JOSÉ CARLOS SERUFO

    A atual epidemia levantou dúvidas quanto à competência do sistema imune humano em combater eficazmente a SARS-Cov-2 e, em especial, quanto à qualidade e à permanência da imunidade resultante da doença. O comportamento de pacientes recuperados, que permanecem em isolamento e em uso de máscara, reflete a orientação dos especialistas, quando comentam: “ainda não sabemos se a imunidade será duradoura, nem se é eficaz na proteção contra uma possível recorrência. Até lá todo cuidado é pouco”. Três estudos respondem a essas dúvidas e servem de base para o resgate da liberdade, do direito de ir e vir e da energia das almas. Vamos a eles.

    Quatro importantes achados iluminam essa resposta tão importante para nós:

    I. Há pessoas resistentes à doença?

    Estudo realizado para identificar proteínas com poder antigênico, candidatas à vacina, e para usar no diagnóstico da SARS-Cov-2, encontrou no grupo-controle 40%-60% dos linfócitos T-CD4, reativos ao atual coronavírus. Surpreendentemente, esses linfócitos, armazenados em banco de congelamento de células da Califórnia, foram colhidos entre 2017 e 2018, portanto, antes da mutação ocorrida na China, no final de 2019. Assim, pela primeira vez, foram encontrados indícios de imunidade cruzada resultante de infecções passadas por outros coronavírus. A figura publicada no estudo de Grifoni e colaboradores 2020, publicado na revista Cell, resume esses dados (ao final do texto).

    II. Quão longa é a memória imune celular?

    A SARS-Cov-1 surgiu em 2003, na Ásia, atingindo 8.000 pessoas de 26 países, com letalidade dez vezes maior do que a SARS-Cov-2. A análise comparativa dos genomas mostrou que a proteína NP (nucleocapsid protein) apresenta alta similaridade entre SARS-Cov-1 (2003) e SARS-Cov-2 (2019). Em outras palavras, a proteína do nucleocapsídio não sofreu mudanças significantes.

    Foram estudados três grupos de pacientes, sendo 36 covid-19 positivo, 26 sobreviventes da SARS-Cov-1 e 37 controles negativos. A resposta imune foi estudada pela ativação do receptor de superfície celular humano. Dos infectados pelo SARS-Cov-2, 33,3% respondem à NP e à NSP (non-structural protein of ORF1), e 66,7%, somente à NP, totalizando 100% de resposta imune celular neste grupo. No grupo SARS-Cov-1, 9% respondem à NP + NSP, e 91% respondem somente à NP, também totalizando 100% de resposta celular 17 anos após a infecção.

    O estudo de IgG específica antinucleoproteína (NP) de 23 pacientes, dentre os 8.000 positivos para SARS-Cov-1 (2003), mostrou 100% de resposta neutralizante para a SARS-Cov-2. Isso revela permanência da resposta imune, contra os dois coronavírus, após 17 anos.

    Assim, a resposta imune celular específica, ausente nos controles não expostos, está presente em 100% dos pacientes recuperados de ambos os grupos, SARS-Cov1 e SARS-Cov2. Como as nucleoproteínas são idênticas, a memória imunológica é de ao menos 17 anos. Esses dados são mostrados no estudo de Le Bert et al. (2020), aprovado para publicação na revista Nature.

    III. A imunidade cruzada e a resistência à doença.

    A avaliação do grupo de 37 pessoas saudáveis, não infectadas por SARS-Cov-1 ou SARS-Cov-2, expostas a outros coronavírus, mostrou 30% com células T reagentes à NP + NSP da SARS-Cov-2, e 21% com reatividade às proteínas não-estruturais. Os achados indicam que cerca de metade da população mundial pode ter o sistema imune preparado para enfrentar a SARS-Cov-2. Esses resultados, obtidos em Cingapura (Nature, Le Bert et al., 2020), reproduzem os achados da Califórnia (tópico I, Cell, Grifoni et al, 2020), fortalecendo a presença de imunidade cruzada contra a Covid19 em significante parcela da população.

    IV. Quando descontinuar o isolamento

    As recomendações do CDC, publicadas em 17 de julho último, recomendam a suspensão, a partir do 10º dia, das medidas de precaução de transmissão para pacientes com doença leve ou moderada, assintomáticos, e há mais de 24 horas sem febre. Em casos graves, esse período se estende a 20 dias. Havendo a possibilidade de controle laboratorial, duas amostras de suabe negativas, coletadas em dias diferentes, facultam antecipar o descontingenciamento antes desses prazos (CDC, 2020).

    Resumo do que sabemos:

    Os resultados obtidos na Califórnia e em Cingapura indicam que cerca de metade da população mundial tem o sistema imune preparado para enfrentar a SARS-Cov-2.

    A análise dos genomas mostrou que a região da ORF1 contém domínios bem conservados entre os coronavírus, o que afere capacidade para reação cruzada contra a SARS-Cov-2.

    A prevalência de células T com reatividade cruzada para NP e ORF1 do proteoma da SARS Cov2 pode explicar as diferenças, entre os diversos países, nas taxas de infecção observadas nesta pandemia.

    O encontro de imunidade celular em pacientes que tiveram SARS-Cov-1, em 2003, e que confere proteção contra a covid19 em 2020, portanto depois de 17 anos, afasta o risco de nova infecção e enterra o temor de que a resposta imune à SARS-Cov-2 possa ser curta. Se pessimista, a proteção conferida pela infecção ou vacina durará duas décadas.

    De extrema importância, as pessoas recuperadas da covid19 adquirem proteção longa, facultando-lhes o passaporte para circular livremente e retomar os elos sociais tão duramente construídos na saga da humanidade e esgarçados pelo longo confinamento. A testagem em massa, utilizando testes laboratoriais confiáveis, pode ajudar neste processo.

    A letalidade está caindo acentuadamente com a evolução da pandemia. Basta observar as curvas epidêmicas dos países que estão passando pela segunda onda, mas isso é assunto para uma próxima rodada…

    Referências

    Grifoni, A et al. Targets of T cells responses to SARS-Cov-2 coronavirus in humans with COVID-19 disease and unexposed individuals. Cells. 2020.

    Le Bert, N et al.SARS-Cov-2 specific T cell immunity in cases of COVID-19 and SARS, and uninfected controls. Nature. Aprovado publicação em 15 de julho 2020.

    CDC. Discontinuation of Transmission-based Precautions and Disposition of Patients with COVID-19 in helthcare patients. July 17, 2020.

    Imunodomínios proteicos de linfócitos T-CD4 específicos da SARS-Cov-2 em 19 pacientes recuperados de covid-19 e em doadores não expostos:

    A) Organização genômica da SARS-Cov-2 e proteoma viral de células infectadas.

    B) Linfócitos T-CD4 específicos para antígeno de SARS-Cov-2 (AIM, OX40, CD137), quantificados por índice de estimulação, usando um pool de peptídeos para cada proteína viral. Casos de covid-19 (acima, em azul, n=19) e doadores não expostos (abaixo, em branco, n=10).

    C) Fração de proteínas da SARS-Cov-2, reconhecidas por linfócitos T-CD4 em casos de covid-19 (acima) e doadores não expostos (abaixo).

    D) Linfócitos T-CD4 específicos para o antígeno da SARS-Cov-2, quantificados pelo índice de estimulação, usando um pool de peptídeos de cada proteína viral. Casos de Covid19 (acima, em vermelho, n=10) e doadores não expostos (abaixo, em cinza, n=10).

    E) Fração de proteína da SARS-Cov-2 reconhecidas pelo linfócito T-CD8 em casos de covid-19 (acima) e doadores não expostos (abaixo) (Grifoni et al., 2020).Trad. do autor.

    Imunodominância de respostas SARS-CoV-2 em covid-19, em pacientes recuperados por SARS-Cov-1 e em indivíduos não expostos:

    a) PBMC de indivíduos SARS-CoV-1/2 não expostos (n=37), recuperados de SARS (n = 23) ou covid-19 (n = 36) foram estimulados com grupos de peptídeos SARS-CoV-2 NP (NP-1, NP-2), NSP7 e NSP13 (NSP13-1, NSP13-2, NSP13-3) e analisado pelo ELISpot. A frequência das células reativas a peptídeos é mostrada para cada doador (pontos/quadrado) e as barras representam a frequência média. Pontos quadrados denotam amostras de PBMC coletadas antes de julho de 2019.

    b) Os gráficos de pizza representam a porcentagem de indivíduos com NP específica, NSP7 / 13 específica ou ambas as respostas em coorte.

    c) A composição da resposta SARS-CoV-2 em não expostos (n = 19) é mostrada como uma percentagem do total de resposta detectada (NP-1 = azul claro; NP-2 = azul escuro; NSP7 = laranja; NSP13-1 = vermelho claro; NSP13-2 = vermelho; NSP13-3 = vermelho escuro).

    d) Frequência de células reativas à SARS-CoV-2 em 11 doadores não expostos aos pools de peptídeos indicados diretamente (ex vivo) e após uma “expansão” de 10 dias.

    e) Uma estratégia de matriz de pool de peptídeos foi aplicada em 3 indivíduos não expostos a SARS-CoV1/2. Os epítopos de células T identificados foram confirmados pelo ICS, e as sequências estão alinhadas com a correspondente sequência de todos os coronavírus conhecidos por infectar seres humanos (Le Bert et al., 2020). Tradução do autor.